AÍ VAI A AÇÂO CONTRA A UFPEL, NA ÍNTEGRA
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE PELOTAS
Ref. aos autos do Procedimento Administrativo nº 1.29.005.000116/2007-18
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República signatário, com suporte no artigo 3º, inciso IV, artigo 5º, caput, artigo 19, inciso III e artigo 129, inciso III, da Constituição Federal; artigo 5º, inciso I, alíneas "c" e “h”, inciso II, alínea “d”, inciso III, alínea “e”, inciso V, alíneas “a” e “b”, inciso VI e artigo 6º, inciso VII, alínea “d”, ambos da Lei Complementar nº 75/93 e artigo 82, I, da Lei n.º 8.078/90 e Lei 7.347/85, vem, perante Vossa Excelência, propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
(COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA)
contra a UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS, fundação autárquica, com endereço no Campus Universitário da UFPel, Capão do Leão, s/nº, CEP: 96010-900, e o INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA, autarquia federal, representada no Estado do Rio Grande do Sul pelo Ilustríssimo Senhor Superintendente Regional, Sr. Mozar Antonio Dietrich, com sede na Av. José Loureiro da Silva, 515, 1º/4º andares, Porto Alegre/RS, CEP: 90010-420.
I. OBJETO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
01. A presente Ação Civil Pública pretende obter provimento jurisdicional que assegure a igualdade no acesso a curso de graduação em medicina veterinária da UFPEL, tendo em vista a recente aprovação, pelo Conselho Universitário da Ufpel, em 20/07/2007, da criação de 'turma especial' do curso de Medicina Veterinária, a fim de implantar o Convênio n. RS/4330/2006/2006, anteriormente firmado entre a Ufpel e o INCRA.
A referida turma especial do curso de Medicina Veterinária se destinará exclusivamente a assentados ou filhos de assentados do programa de reforma agrária do próprio INCRA. Além de ser assentado, o candidato deverá ainda obter a indicação do assentamento onde reside, além de carta de anuência do Superintendente do INCRA.
Tal 'ação afirmativa', na forma em que vem sendo trazida à comunidade universitária, além de ferir o princípio da gestão democrática da instituição de ensino e a própria autonomia universitária, leva a tratar de forma diferenciada os estudantes que sejam assentados, ou filhos de assentados pelo programa de reforma agrária do governo federal, em detrimento de todos aqueles que não pertençam a esta 'minoria', e que se encontrem em situação equivalente.
Objetiva-se, assim, com a presente ação civil pública, que seja vedado qualquer processo seletivo na Ufpel que leve em conta a situação de assentado para reforma agrária, ou qualquer outra que não seja dotada de fins de universalidade, e que seja aplicável indistintamente a todas as unidades acadêmicas da Universidade Federal de Pelotas.
II. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
02. O Ministério Público, como Instituição essencial à Justiça, conforme art. 127 da CF/88, tem como função precípua a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
03. Dessa forma, a Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso III, estabelece como mecanismo de atuação do Ministério Público a propositura de ação civil pública em defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos[1]
04. A Lei Complementar n.º 75/93 também explicitou as atribuições do Ministério Público Federal, notadamente em seus artigos 5º e 6º.
05. Por seu turno, o Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/90, em seu artigo 82, confere legitimidade ao Ministério Público para ajuizar toda e qualquer ação coletiva na defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, estes entendidos como aqueles oriundos de uma base comum (art. 81, parágrafo único, inciso III, da mesma lei).
06. No presente caso, o Ministério Público Federal vem a Juízo defender o direito constitucional à igualdade entre pessoas que se encontram sob as mesmas condições, a fim de excluir critério que, afrontando o princípio da razoabilidade, cria turma especial com acesso restrito a assentados ou filhos de assentados dos programas de reforma agrária do INCRA.
07. A defesa dos direitos coletivos pelo Ministério Público já é questão analisada e resolvida pela moderna Jurisprudência pátria, como se pode observar dos termos do informativo n. 389 do Supremo Tribunal Federal, que consolidou o entendimento quando do exame do Recurso Extraordinário 332545/SP, o qual, pela relevância do tema, se transcreve a seguir:
Ministério Público. Legitimidade. Ação Civil Pública. Mensalidades Escolares (Transcrições)
Ministério Público. Legitimidade. Ação Civil Pública. Mensalidades Escolares (Transcrições) RE 332545/SP* RELATOR: MIN. GILMAR MENDES DECISÃO: Trata-se de recurso extraordinário fundado no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, contra acórdão que entendeu que o Ministério Público não tem legitimidade para propor ação civil pública sobre mensalidades escolares. O acórdão ficou assim ementado: “Ilegitimidade ‘ad causam’ - Ação civil pública - Ministério Público - Mensalidades escolares - Impossibilidade do uso da ação civil pública, em juízo, para a defesa de interesses de pequenos grupos determinados, em razão de danos variáveis e divisíveis - Hipótese de prestação de serviços, de caráter patrimonial e privado, disciplinados por uma relação exclusivamente contratual - Ausência de conversão da escola particular em ente público pelo fato de desempenhar relevante missão social - Incompetência do Ministério Público na substituição dos indivíduos na esfera de seus direitos - Ilegitimidade caracterizada - Recurso improvido.” (fls. 373) Alega-se violação aos arts. 127, caput, 129, III e IX, 205 e 209, da Carta Magna. O acórdão recorrido extraordinariamente não está em consonância com a jurisprudência desta Corte, conforme se depreende do julgamento do RE 163.231, Plenário, Rel. Maurício Corrêa, DJ 29.06.01: “EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO.
1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). 2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1.Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1.Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.” Assim, conheço e dou provimento ao recurso (art. 557, § 1o-A, do CPC), para afastar a alegada ilegitimidade do Ministério Público Estadual. Publique-se. Brasília, 06 de maio de 2005. Ministro GILMAR MENDES Relator * decisão pendente de publicação. (grifado)
III. FATOS
08. A criação do curso de Medicina Veterinária teve origem em projeto do Instituto Educar(fls. 248/273), organização não governamental com sede no Assentamento Nossa Senhora da Aparecida, área nove, em Pontão/RS. Referido projeto estabelecia em seu item 2 os critérios de seleção dos alunos que iriam freqüentar o curso de Medicina Veterinária, que teria a Ufpel, como ‘entidade executora’; e o próprio Instituto Educar, além da universidade, atuando em conjunto na coordenação geral e supervisão pedagógica:
‘2. CRITÉRIOS DE SELEÇÃO
O processo de seleção seguirá critérios definidos pela Faculdade de Veterinária, conjuntamente a um itinerário coletivo definido pela comunidade de origem do assentado ou filho de assentado. Ou seja, dentre os nomes indicados pelas comunidades a Faculdade de Veterinária fará uma seleção baseada em critérios acadêmicos de 60 nomes. Então o primeiro critério de seleção é feito pela comunidade por meio da observação sobre participação, interesses dos educandos/as nas atividades mais diversas realizadas na própria comunidade. Estes nomes serão apreciados pelo Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST nos respectivos estados, os quais indicarão os nomes selecionados ao Setor Nacional, passando assim a apreciação a Faculdade de Veterinária que fará a seleção final.”(grifei).
09. Já neste primeiro momento, a Comissão de Ensino do Conselho Regional de Medicina Veterinária se posicionou contrariamente ao projeto(fl. 07), pela necessidade de os candidatos deverem integrar os quadros do MST:
“considerando a tomada de conhecimento da existência de projeto intitulado “Curso de Graduação em Medicina Veterinária”, projetado e financiado pelo Instituto Educar, em tramitação na Universidade Federal de Pelotas – UFPel, através do concedente PRONERA-INCRA, temos de manifestar nossa preocupação além de algumas considerações importantes que entendemos necessário.
O referido curso será destinado a assentados, além de seus filhos, quando pertencentes ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – o MST.
Entendemos extremamente preocupante a situação, pois corremos o risco de, priorizando um segmento da população, abrir graves precedentes que dariam condições a qualquer organização reivindicar para si e para os seus alguns privilégios que não espelham a verdade dos direitos constitucionais. No passado houve a famigerada “lei do boi” que tanta discriminação oportunizou, além de muitos privilégios. A categoria sempre foi contrária a esta lei e lutou por sua revogação.”
10. Em 19 de setembro de 2006, após várias reuniões, a proposta do projeto foi rejeitada pelo Colegiado do Curso de Medicina Veterinária, nestes termos:
“(...)os presentes se deliberam que o Colegiado de Graduação em Medicina Veterinária da Ufpel, nas instâncias em que tiver a participação deliberativa, deverá se posicionar contrário a criação de uma turma especial de alunos para o Curso de Medicina Veterinária oriundos dos assentamentos do Movimento dos Sem Terra conforme explicitado no Projeto do Centro de Capacitação e Desenvolvimento Rural Sustentável e favoráveis a criação do referido Centro, integrando as Faculdades de Veterinária, Agronomia, Engenharia Agrícola e EMBRAPA.”
11. Em 14 de novembro de 2006 o Conselho Departamental da Faculdade de Medicina Veterinária também rejeitou o projeto, conforme consta da ata n. 17/2006(fl. 186):
“(...) após uma ampla avaliação por todos Conselheiros presentes(representantes das classes de professores de carreira, servidores técnicos administrativos, representação do corpo discente, Chefes de Departamentos, Coordenadores de Colegiado de Graduação e da Pós-Graduação, Diretor e Vice Diretor da Unidade), a proposta foi colocada em votação, tendo sido rejeitada pela maioria dos presentes. Durante o regime de votação a representação dos professores titulares, o representante do Colegiado do Curso de Medicina Veterinária e o Chefe do Departamento de Veterinária Preventiva se pronunciaram a favor da criação do CCDRS e contra o ingresso de uma turma especial no curso de Medicina Veterinária, ou seja contra uma das metas previstas na proposta que é de “Manter pelo menos uma turma especial de curso de graduação, em convênio com o PRONERA, sendo a primeira do curso de veterinária. Nada mais(...)”
12. Em 20 de dezembro de 2006 uma nova proposta foi novamente rejeitada pelo Conselho Departamental da Veterinária(ata n. 18/2006, fl. 185):
“(...) a proposta após ampla discussão envolvendo todos os presentes foi rejeitada pela maioria e o resultado da votação foi a seguinte: abstenção 6 votos; contra a minuta proposta 5 votos e favorável 2 votos.(...)”
13. Após isto, em 28/12/2006 – mesmo sem a aprovação do projeto por nenhum órgão da Ufpel -, foi assinado pelo Reitor da Ufpel, juntamente com a Fundação Simon Bolívar e o INCRA, o convênio RS/4330/2006/2006, tendo como objeto, segundo sua cláusula primeira:
“[a] Criação do Centro de Capacitação em Desenvolvimento Rural Sustentável, órgão suplementar da Ufpel, com vistas a criar espaço institucional para formação e capacitação das famílias oriundas de assentamentos da reforma agrária e da agricultura familiar(...)”
Como uma das condições prévias à liberação dos recursos pelo INCRA, constou na cláusula segunda, item b:
“aprovação pela UFPel de programa especial de graduação em Medicina Veterinária, por meio, inicialmente de uma turma especial de 60 educandos(as), com foco no sistema de agricultura familiar, em Convênio com o PRONERA.”
14. Já em fevereiro de 2007, foi aprovado pelo Cocepe da Ufpel o projeto intitulado PROGRAMA ESPECIAL PARA A FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS(PEFRHEC)(fls. 125/164), o qual, quanto ao processo de seleção e ingresso, assim dispunha:
“os candidatos deverão preencher os requisitos legais para ingresso na Universidade, (ou seja, Educação Básica concluída, quitação com o serviço militar e apresentação de documentação comprobatória desses quesitos e de sua condição civil), realizar processo seletivo organizado pelo Centro Especializado em Seleção – CES da Ufpel e atender as demandas previstas no Edital em especial aquelas relacionadas com a caracterização da clientela que será atendida pelo Programa.”
15. Após isto, em final de maio de 2007, a partir de notícia publicada no site do jornalista Irineu Masiero, o Ministério Público Federal instaurou o presente procedimento. Cabe notar que por ocasião do convênio a Ufpel não havia divulgado a realização do convênio com o INCRA, e os próprios docentes da Faculdade de Veterinária, após a rejeição pela unidade do projeto, entendiam que não seria dado seguimento à criação do Centro de Capacitação e da turma especial. Conforme neste sentido a resposta do Prof. Claudiomar Brod, Coordenador do Colegiado de Curso da Faculdade de Veterinária:
“(...) não temos conhecimento de assinatura de convênio com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e que a mesma nos foi fornecida por seu documento anexo ao ofício “Lição de Casa”, portanto, se esse convênio foi firmado, a cópia deve estar na Fundação Simon Bolivar(...)”
16. Da mesma forma, segundo o diretor da Veterinária, Prof. Mario Meireles(de resto, cabe frisar, sempre favorável ao projeto e à criação de turma especial para assentados do MST):
“(...) Aquilo de que tem conhecimento em relação à estruturação do curso é o documento anexo, oriundo do Instituto Educar, trazido à Ufpel já no ano de 2005. Opinou em reuniões do Conselho Departamental favoravelmente ao projeto CCDR, pelas razões esmiuçadas na Ata n. 18/2006, da Reunião do Conselho Departamental da Faculdade de Veterinária de 20/12/2006. Não tinha conhecimento sobre a realização do convênio firmado no final de 2006, nem de detalhes sobre os projetos constantes no procedimento administrativo referido.”
17. Posteriormente, e após a notícia sobre o convênio no site do referido jornalista e a instauração de procedimento pelo Ministério Público Federal, em junho de 2007 foi elaborado o documento intitulado PROJETO CURSO DE GRADUAÇÃO EM MEDICINA VETERINÁRIA, detalhando a forma de execução da proposta(fls. 164/176). No referido documento, ficou consignada a supervisão pedagógica pela Ufpel, em conjunto com o INCRA e os movimentos sociais(item 1.3.2), e o estabelecimento dos critérios de seleção, nos seguintes termos:
“o processo de seleção seguirá critérios definidos pela Universidade Federal de Pelotas. Os candidatos, no momento da inscrição no processo seletivo, deverão comprovar vinculação às áreas de reforma agrária, unicamente, mediante apresentação de atestado emitido pelo INCRA, indicando que o mesmo seja beneficiário de assentamento da reforma agrária.(...)”
18. Após isto, em 20 de julho de 2007, o projeto foi aprovado pelo Conselho Universitário da Ufpel.
19. O histórico da criação do curso de Medicina Veterinária em pauta, até a decisão do Conselho Universitário da Ufpel, foi assim resumido pelo jornal Diário Popular, em sua edição de 20 de julho, data da decisão do CONSUN:
“Entenda o caso
Março de 2006 - A Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, da Assembléia Legislativa do Estado, propôs à UFPel a criação de graduação em Medicina Veterinária, com foco em agricultura familiar para assentamentos rurais (Incra/MDA). Dentro desta mesma linha, o Conselho Coordenador de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cocepe) da UFPel, aprovou o Programa de Educação no Campo, e os diretores das faculdades de Medicina Veterinária, Agronomia e Engenharia Agrícola elaboraram a proposta de construção do Centro de Capacitação e Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS).
19 de setembro de 2006 - O Colegiado de curso da Medicina Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) rejeitou por 11 votos a um a criação da turma especial para alunos oriundos de assentamentos ou ligados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).28 de dezembro de 2006 - O reitor da UFPel César Borges assina convênio com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), no valor de R$ 4,5 milhões para a criação do Centro de Capacitação e Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS), que visa a destinação de 60 vagas para assentados no curso de Medicina Veterinária. Os recursos já foram repassados à universidade.
28 de junho de 2007 - Representantes dos conselhos Federal e Regional de Medicina Veterinária reuniram-se, com a direção da Faculdade de Medicina Veterinária, colegiado do curso e diretório acadêmico, no campus do Capão do Leão. À tarde, foram recebidos pelo vice-reitor Telmo Xavier. Participaram do grupo, o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do RS (CRMV-RS), Air Fagundes, integrantes da Comissão de Ensino do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), diretoria da Associação dos Médicos Veterinários da Região Sul e representante do Sindicato dos Médicos Veterinários (Sinvet/RS), que se posicionaram contra a criação da turma especial.
3 de julho de 2007 - Enquanto os membros do Conselho da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) participavam de reunião no prédio da Faculdade de Medicina, do lado de fora, alunos de vários semestres do curso de Veterinária protestavam contra a implantação do Centro de Capacitação e Desenvolvimento Rural Sustentável, pauta discutida pelos conselheiros. A decisão sobre o assunto foi adiada porque um dos conselheiros pediu vistas ao processo para análise dos termos. O prazo era de uma nova reunião, em nove ou dez dias.
9 de julho de 2007 - Alunos dos cursos de Medicina Veterinária, Agronomia e Engenharia Agrícola entre outros, realizaram assembléia no auditório da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (Faem) e se posicionaram mais uma vez contra à criação de turma especial para alunos oriundos de assentamentos. Após a assembléia, eles realizaram manifestação junto ao prédio da Reitoria, e obtiveram o compromisso do reitor em receber os estudantes, na tarde do dia 16. A reunião do Conselho Universitário, que estava marcada para o dia 12 para votar o convênio, foi adiada. No mesmo dia, foi realizada audiência pública na Câmara de Vereadores de Pelotas para debater o assunto. Participaram o representante da Superintendência do Incra, Leonardo Melgarejo, e o veterinário Dario de Mello, que integra o projeto numa parceria entre o Incra, Fundação Simon Bolivar e Embrapa.
11 de julho de 2007 - Vários partidos protocolam na Câmara de Vereadores moção de apoio à Universidade Federal de Pelotas (UFPel) para a criação do curso.12 de julho de 2007 - O reitor César Borges publica esclarecimento sobre a criação das vagas a assentados e anuncia para o dia 20 a reunião do Conselho Universitário.
16 de julho de 2007 - O reitor César Borges se reúne com alunos da Medicina Veterinária, no Centro de Integração do Mercosul e volta a defender, os recursos de R$ 3,5 milhões destinados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), para criação de turma especial destinada a assentados de reforma agrária. À noite, estudantes dos vários cursos da UFPel se reuniram na sede do Diretório Central de Estudantes (DCE), para decidir a posição que será levada à reunião do Conselho Universitário.
20. O histórico acima dá uma idéia do processo de discussão no âmbito da Universidade Federal de Pelotas, desde as decisões iniciais na unidade acadêmica envolvida, a Faculdade de Veterinária(as quais, em todas as instâncias da Veterinária, rejeitou o projeto), até a decisão do Conselho Universitário, de 20/07/07, que aprovou o projeto, por 36 votos a favor e 20 contra.
21. Já no Ministério Público Federal, como ressaltado, foi instaurado procedimento administrativo em 28/05/07, a partir de notícia publicada no site do jornalista Irineu Masiero, noticiando a celebração do convênio entre a Ufpel e o INCRA, ocorrida em dezembro de 2006, e anteriormente veiculada no site do INCRA.
A instauração do procedimento só ocorreu nesta data, porque até então não havia notícia sobre o prosseguimento deste projeto. Com efeito, durante o ano de 2006 o projeto da criação da turma de Veterinária exclusiva para assentados da reforma agrária – ou, mais eufemisticamente, como se prefere nos documentos oficiais, “voltado à agricultura familiar” - tinha sido amplamente debatido em todas as instâncias e conselhos da Faculdade de Medicina Veterinária, neles sendo rejeitado.
Na época, o assunto foi noticiado pelo jornal Diário Popular, tanto em matérias da pauta do jornal como especialmente na coluna Espeto Corrido, do jornalista José Ricardo Castro – cópias anexas. Em março de 2006, previa-se o seguinte trâmite ao projeto dentro dos órgãos da universidade, em matéria assinada pelo jornalista Álvaro Guimarães:
“Cidade: Reitoria garante discussão do projeto que beneficia assentados
O reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), César Borges, garantiu a realização, em abril, de uma ampla discussão com a comunidade acadêmica sobre o projeto que propõe a criação de um curso de Veterinária para agricultores de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Borges, no entanto, descartou de antemão qualquer forma de ingresso na universidade por indicação. “Isto é ilegal”, disse. O ingresso sem vestibular era o ponto mais polêmico do projeto, que no início da semana motivou protestos dos estudantes da Faculdade de Medicina Veterinária.Ontem pela manhã o reitor recebeu uma comissão de alunos para ouvir a posição da comunidade estudantil. Durante o encontro surgiu a proposta de realização de um debate sobre o projeto que foi elaborado pelo Instituto Educar (ligado ao MST) e proposto à UFPel pela Comissão de Educação da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. A nova reunião teria como objetivo expor aos estudantes detalhes do projeto e as alternativas possíveis para atendê-lo. O reitor também deu garantias de que a proposta projeto não contará com tratamento ou trâmite especial. ESTUDANTES MOBILIZADOS
Satisfeitos com a posição da reitoria, os estudantes decidiram durante reunião realizada ontem no Centro Acadêmico manter um seminário constante sobre o projeto do novo curso até a reunião de abril. “Queremos esclarecer todas as dúvidas da comunidade e apresentar o projeto para o maior número possível de alunos”, justificou André Boss, da direção do Centro Acadêmico. As reuniões acontecerão no Centro Acadêmico, no campus do Capão do Leão, todas as segundas-feiras ao meio-dia até o dia do debate com a reitoria. Ontem somente 30 dos 450 estudantes do curso participaram da reunião.
PROJETO E TRÂMITE
- A proposta do Instituto Educar prevê a criação de um curso de Medicina Veterinária para estudantes selecionados em assentamentos de todo o país. - As 60 vagas seriam preenchidas da seguinte forma: as comunidades indicariam nomes à Faculdade de Veterinária que seria encarregada de fazer a seleção. A indicação dos assentamentos teria como critérios a participação e os interesses dos educandos/as nas atividades realizadas na própria comunidade. - Durante o curso haveria outra seleção na qual seriam avaliadas o engajamento e a vontade de permanência dos estudantes. - O curso teria duração de 2006 ate 2011.
- O financiamento seria feito através Pronera/Incra.- O curso seria a partir de uma abordagem interdisciplinar, que contemplaria aspectos bióticos (plantas, animais, organismos do solo), abióticos (clima, solo) e socioeconômico-culturais (economia, sociologia, antropologia) do meio ambiente rural, com vistas à sua gestão. - O curso funcionaria em regime de alternância, composto basicamente de Tempo Escola (TE) e Tempo Comunidade (TC).resultado parcial das assembléiasTRÂMITEApós a discussão com a comunidade acadêmica da Veterinária o projeto do novo curso de Veterinária deverá seguir os seguintes passos até ser aprovado:1º) Pró-Reitoria de Graduação - para avaliação e parecer técnico;2º) Colegiado de Curso - nova avaliação3º) Conselho Departamental da Medicina Veterinária - para realização de alterações necessárias4º) Conselho de Coordenação de Ensino, Pesquisa e Extensão - para aprovação final. (Álvaro Guimarães)”
Entretanto, como se viu, ao contrário da previsão constante na matéria acima transcrita, o projeto teve uma tramitação mais atribulada e, mesmo após a rejeição por todos os órgãos da faculdade de Veterinária, terminou sendo aprovado pelo COCEPE e finalmente pelo Conselho Universitário, no último dia 20/07/07.
Do direito
Violação ao princípio da igualdade
22. A questão que se levanta nesta Ação Civil Pública diz com os limites da implementação de políticas de discriminação positiva (supostamente enquadráveis como ‘ações afirmativas’), e também com os limites da autonomia universitária, e especialmente das distorções que se procura atribuir a política de ações afirmativas a fim de satisfazer os interesses ideológicas e favorecer determinados movimentos sociais – no caso, diga-se com todas as letras, muito embora as tentativas de mascarar a situação no decorrer do processo – para favorecer aos integrantes do MST.
23. Sabe-se que no cerne da idéia das ações afirmativas se encontra o princípio da igualdade material, manifestação do princípio da isonomia, o qual, partindo do conceito de igualdade formal (vedação de tratamento discriminatório negativo), evoluiu para permitir a existência de políticas públicas destinadas a mitigar as desigualdades que se põem, a fim de construir uma verdadeira igualdade, desigualando os desiguais no afã de nivelá-los.
24. Com efeito, observando as necessidades do corpo social, a adoção de medidas com caráter promocional a certos grupos sociais têm grande valia na medida em que favorecem o desenvolvimento pessoal e social de indivíduos que, por força de acontecimentos históricos os mais variados, não lograram atingir o máximo de suas potencialidades diante das parcas oportunidades a eles oferecidas pelo conjunto da sociedade.
25. Não obstante, a ‘ação afirmativa’ – se é que assim se pode denominar o curso em vias de implantação - que a UFPEL pretende implementar, de garantir melhores condições de acesso a assentados e filhos de assentados – desde que sejam selecionados pelas lideranças de seus assentamentos e contem com o aval do superintendente do INCRA[2], traz em seu bojo discrímen injustificável, na medida em que privilegia os integrantes de uma minoria restrita de pessoas, em preterição a todos os demais segmentos da sociedade.
26. Termina-se, assim, por criar privilégio a determinado grupo de estudantes (os assentados e seus filhos), cujos integrantes se encontram em relativo grau de paridade – ou mesmo em melhor condição – do que uma série de estudantes e integrantes dos mais diversos grupos sociais, o que se afigura desarrazoado.
27. Isso porque os critérios para eleição de ações afirmativas devem passar, necessariamente, pelo exame da essencialidade da adoção dessas medidas para conformar e promover a igualdade material de grupos de indivíduos historicamente discriminados. Neste sentido, não restam dúvidas de que, efetivamente, a criação de critério diferenciado de acesso à Universidade pública baseado exclusivamente na condição de ser integrante da 'classe social', ou 'minoria' de assentados, não é medida adequada à concretização do princípio da isonomia e, conforme já mencionado, do princípio da igualdade de condições para o acesso ao ensino, ambos considerados em seu aspecto material.
É certo que se têm admitido a criação das denominadas cotas sociais, ao lado das cotas raciais, baseadas sobretudo na freqüência dos estudantes a escolas públicas nos níveis fundamentais de ensino. Neste sentido, parte-se das (perversas) peculiaridades do sistema de educação brasileiro. Enquanto nos níveis fundamentais, as escolas privadas são as que oferecem a melhor qualidade de ensino, quando se trata de ensino superior, as universidades públicas, notadamente as instituições federais de ensino, detêm um reconhecido e merecido renome. Acresça-se a isto o fato de as universidades públicas serem ainda gratuitas – e se espera que continuem sendo -, o que as torna especialmente atraentes aos estudantes mais bem aquinhoados socialmente.
Assim, os estudantes de classe média e de classe alta atendem o ensino fundamental e médio em escolas particulares, obtendo a melhor preparação para o exame vestibular das universidades públicas, e acabam obtendo as vagas almejadas. Com isso, o ingresso na universidade acaba se tornando, a pretexto da objetividade e da igualdade do processo seletivo do vestibular, mais uma forma de perpetuação das divisões sociais que marcam o país, deixando a educação nacional de atuar todas as suas potencialidades como meio de ascensão e igualdade social à maioria da população.
Por outro lado, os estudantes das classes menos favorecidas acabam por se tornar presas de uma armadilha: cursam o ensino fundamental e médio em escolas públicas, de pior qualidade, e, em geral, não conseguem vagas nas universidades públicas. Tampouco conseguem cursar o ensino superior nas instituições privadas, pelo custos com que têm que arcar.
Na tentativa de diminuir estes problemas, cabe referir a criação do programa Prouni, instituído pela lei federal n. 11.096/2005 (norma jurídica de inegável importância no deslinde da questão posta nesta ACP, por ser, atualmente, no direito brasileiro, uma das poucas previsões inscritas na legislação federal sobre cotas no ensino superior), com o objetivo de conceder bolsas nas instituições de ensino superior privadas. Com efeito, o art. 7º da referida lei dispõe:
Art. 7o As obrigações a serem cumpridas pela instituição de ensino superior serão previstas no termo de adesão ao Prouni, no qual deverão constar as seguintes cláusulas necessárias:
I - proporção de bolsas de estudo oferecidas por curso, turno e unidade, respeitados os parâmetros estabelecidos no art. 5o desta Lei;
II - percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.
§ 1o O percentual de que trata o inciso II do caput deste artigo deverá ser, no mínimo, igual ao percentual de cidadãos autodeclarados indígenas, pardos ou pretos, na respectiva unidade da Federação, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
28. Fixe-se, pois, que o reconhecimento da legislação federal transcrita é destinada a contemplar grupos com características étnicas gerais, usando-se o critério da autodefinição para indígenas e negros – estratos sociais reconhecidamente discriminados e preteridos no desenvolvimento social do país – além dos deficientes físicos.
Assim, ao lado das cotas raciais (tais como previstas na lei do PROUNI) as cotas sociais, estabelecidas pelas próprias universidades públicas, no uso de sua autonomia, têm sido usadas sobretudo para permitir a reserva de vagas a alunos egressos de escolas públicas. Permite-se, desta forma, que aqueles alunos que cursaram o ensino fundamental e médio em escolas públicas, e, assim, presume-se, por serem menos aquinhoados socialmente, tenham um percentual mínimo de vagas reservadas. Pretende-se deste modo combater a principal crítica à universidade pública brasileira, a de se destinar preponderantemente à formação de egressos dos segmentos mais abastados da sociedade e ajudar a perpetuar as desigualdades sociais, ao invés de combatê-las.
Diga-se de passagem, porém, que mesmo esta espécie de ação afirmativa não se mostra imune a críticas ou a temperamentos. Se as cotas raciais despertam o debate sobre a questão do racismo no Brasil - e mesmo uma minoria de integrantes do movimento negro são contrários a esta forma de 'discriminação positiva'-, a adoção das cotas sociais, para egressos de escolas públicas, estabelecendo-se pura e simplesmente um percentual de vagas destinados a estes, também encontra ponderações e contra-argumentos válidos, se não quanto ao mérito da política, pelo menos quanto às formas e limites de sua implementação.
Assim é que na USP, por exemplo, não se estabelece um percentual fixo de vagas destinado a egressos de escolas públicas. Ao contrário, estes têm um 'adicional' à sua nota no processo seletivo, o que lhes permite que, mesmo com notas um pouco mais baixas que os outros candidatos, possam obter a vaga - o que, se por um lado, não garante um número mínimo de vagas aos egressos de estabelecimentos públicos de ensino médio, por outro lado evita que alunos com rendimento demasiadamente baixo no processo seletivo, possam ingressar na universidade. Outras instituições adotam o mesmo sistema.
29. Da mesma forma, há de se garantir que as cotas sociais favoreçam apenas àqueles que efetivamente freqüentem integralmente o ensino fundamental e médio em escolas públicas, pois do contrário se poderia atribuir preferência indevida a alunos que cursassem o ensino fundamental em escolas privadas e no ensino médio ‘migrassem’ para educandários de ensino médio, muitos dos quais de reconhecida qualidade de ensino, dos quais são exemplos em Pelotas o Cefet/RS, e em Porto Alegre o Colégio Militar.
Cabe frisar, entretanto, que não se pretende, com a presente ação, discutir a política de ações afirmativas in genere, nem se pretende questionar a implantação de cotas sociais para egressos de escolas públicas. Não é necessário adentrar o mérito dos argumentos favoráveis e contrários aos sistemas atualmente implantados ou em vias de implantação nas universidades públicas.
O que se argumenta, ao contrário, é que, mesmo se aceitando ou se advogando a adoção de políticas públicas constituídas por ações afirmativas, o sistema adotado pela Universidade Federal de Pelotas, embora supostamente adequado aos preceitos da política pública adotada pelo INCRA, através do PRONERA, não se coaduna com o princípio da igualdade inscrito na Constituição Federal.
Há inadequação entre os meios e fins, ferindo o princípio da razoabilidade. O fim, de qualificar e possibilitar o acesso ao ensino superior pelos assentados da reforma agrária, há de ser obtido por outros meios, que não o de simplesmente colocá-los na situação especial e privilegiadíssima de disputar um processo seletivo exclusivo. O meio juridicamente razoável e adequado a ser utilizado é o de qualificar no ensino médio os destinatários, para que ingressem por via de processo seletivo normal, ou, mesmo que ingressando através de uma política de cotas sociais para egressos de escolas públicas.
Decisões jurisprudenciais sobre ações afirmativas no ensino superior
30. A medida que são implantados programas de ação afirmativa, a questão das cotas começa a ser enfrentada pela Justiça brasileira. Até o momento, porém, ao que se saiba, nunca houve pelo Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da jurisdição constitucional, um pronunciamento lidando diretamente com o assunto. Cabe frisar, entretanto, trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na Adin 3.324, reconhecido especialista e doutrinador no assunto:
“Que estejamos, ou não, diante de ações afirmativas, pouco importa, pois o certo é que, para que se legitimem, medidas de caráter manifestamente derrogatório de um sistema de acesso, tais como a prevista na norma impugnada, devem passar por testes rigorosos de constitucionalidade, tendentes a verificar, de um lado, se a norma que confere a respectiva vantagem tem como escopo o atingimento de um objetivo constitucional legítimo e, de outro, se o meio utilizado serve, efetivamente, à obtenção dos fins almejados.
Este é, em suma, o chamado strict scrutiny, que norteia, por exemplo, toda a prática de jurisdição constitucional da Corte Suprema dos Estados Unidos em matéria de igualdade, especialmente no campo da educação.”(fl. 29 do acórdão).
31. Já o Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou aceitável o sistema de cotas raciais e sociais da Universidade Federal do Paraná – muito diferente do curso e do processo de seleção que se quer implantar na Universidade Federal de Pelotas:
Classe: AC – APELAÇÃO CIVEL
Processo: 2005.70.00.003167-7
UF: PR
Data da Decisão: 12/12/2006
Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA
Fonte D.E. DATA:07/02/2007 Relator VÂNIA HACK DE ALMEIDA Decisão A TURMA, POR UNANIMIDADE, DECIDIU NEGAR PROVIMENTO À APELAÇÃO. Ementa ADMINISTRATIVO. EXAME VESTIBULAR. SISTEMA DE COTAS RACIAIS E SOCIAIS. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LEGALIDADE E CONSTITUCIONALIDADE.
A partir da declaração dos direitos humanos, buscou-se proibir foi a intolerância em relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas raças, a sonegação de oportunidades a determinadas etnias. Basta olhar em volta para perceber que o negro no Brasil não desfruta de igualdade no que tange ao desenvolvimento de suas potencialidades e ao preenchimento dos espaços de poder.
O artigo 207 da Constituição Federal consagra a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades, sendo lícito, portanto, à recorrida estabelecer sistema de cotas para as vagas oferecidas à seleção de candidatos como lhe aprouver, desde que não afronte, como não está a afrontar no caso em tela, nenhuma outra regra matriz da Constituição. Ademais, com relação à alegação de violação ao princípio da isonomia, cabe esclarecer que a igualdade somente pode ser cotejada entre pessoas que estejam em situação equivalente, sendo levados em consideração os fatores ditados pela realidade econômica e social, que influem na capacidade dos candidatos para disputar vagas nas universidades públicas. Assim, não se há de reconhecer quebra de igualdade no ato administrativo realizado pela parte apelada.
O interesse particular não pode prevalecer sobre a política pública; não se poderia sacrificar a busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo particular.
32. Recente decisão da Justiça Federal de Santa Catarina, em ação movida pelo Ministério Público Federal, traz situação muito semelhante a dos presente autos, onde um curso de Administração à distância promovido pela UFSC foi suspenso pelo Juiz Federal Gustavo Dias de Barcelos. Ali, quem ‘comprava’ as vagas para sua ‘clientela’, ou seja, para seus servidores, não era o INCRA, mas o Banco do Brasil:
“A Justiça Federal suspendeu o curso de Administração oferecido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na modalidade de ensino à distância. O juiz Gustavo Dias de Barcellos, da 4ª Vara Federal de Florianópolis, considerou que o edital é contrário à Constituição, por destinar as vagas do curso a candidatos que sejam funcionários do Banco do Brasil ou servidores públicos. A decisão atendeu pedido de liminar do Ministério Público Federal (MPF) em uma ação civil pública.De acordo com o MPF, o edital da UFSC abriu 500 vagas, destinadas exclusivamente a funcionários do banco ou a servidores de órgãos situados em SC. Para o magistrado, em exame inicial, “resta aparente que tal requisito à participação no processo seletivo fere o princípio constitucional da igualdade, ao criar privilégios para uma classe de indivíduos, restringindo-se outros”. O mandado de intimação da União foi expedido segunda-feira (23/7/2007) e cabe recurso ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.O MPF alegou também que, embora se trate de um projeto-piloto e haja apoio financeiro do Banco do Brasil, o critério de ocupação das vagas não prevê um percentual mínimo que permita a participação de outras pessoas. O curso deve ser suspenso até a regularização do processo seletivo, com a abertura de vagas para a sociedade em geral, ou reexame da questão por ocasião da sentença. Em suas manifestações, a União e a UFSC não informaram se as aulas já teriam começado nem indicaram eventuais prejuízos com a suspensão do curso.
Processo nº 2007.72.00.008103-7
Curso de veterinária para assentados: participação no processo seletivo somente mediante indicação da liderança do assentamento – leia-se MST – e autorização do Superintendente do INCRA
33. No curso de Veterinária para assentados da Ufpel, os critérios são diferentes dos de uma cota como a da Universidade Federal do Paraná, tal como examinada pelo TRF da 4ª Região: a desigualação ocorrerá em função de o beneficiário da cota, ou seu familiar(assentados ou filhos de assentados) já ter tido um benefício do governo, de já ter sido contemplado com um lote de terra em um assentamento.
E, mais do que isto, o assentado tem que obter ainda o aval do próprio assentamento onde mora(cujas lideranças e decisão final em geral encontram-se a cargo dos movimentos sociais envolvidos na luta pela reforma agrária, notadamente pelo MST), e ainda contar com a permissão do Superintendente Regional do INCRA, politizando ainda mais o processo, como ficou consignado em notícia do jornal Diário da Manhã, publicada ipsis litteris anteriormente no site do Ministério do Desenvolvimento Agrário:
“(...) A UFPel firmou, recentemente, parceria com o MDA e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para oferecer curso de graduação em Medicina Veterinária para agricultores familiares e assentados da reforma agrária. A criação desse curso visa suprir a necessidade de mão-de-obra de médicos veterinários para trabalhar dentro dos assentamentos.
A proposta prevê a oferta de 60 vagas para assentados credenciados pelo Incra. A previsão é de que as provas sejam realizadas até setembro, em Pelotas (RS). Qualquer assentado ou filho de assentado inscrito no Incra pode se candidatar às vagas, desde que tenha sido indicado pelo assentamento onde mora e obtenha, do superintendente regional do Instituto, uma carta de anuência para poder se inscrever(...)”(http://www.mda.gov.br/index.php?ctuid=13472&sccid=134, acesso em 29.07.2007)
34. Desta forma, se desigualam situações absolutamente idênticas: a do assentado no programa de reforma agrária do INCRA(ou seja, ex-sem terra, agora com-terra) e o ‘sem terra’ verdadeiro, aquele que está em algum acampamento à beira de estrada, esperando que ele e sua família possam ser contemplados com um lote. Tampouco poderá concorrer ao processo seletivo o filho do pequeno produtor rural, também órfão de melhores políticas rurais, de financiamento da produção, por parte do Estado. Ou aqueles que não tenham apoio de seu assentamento, ou não obtenham o ‘aval’ do superintendente do INCRA, escancarando a politização e ideologização do processo seletivo, conforme ressaltado no próprio site oficial do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Ademais, se percebe que os destinatários das normas - assentados ou filhos de assentados – não constituem um grupo de indivíduos constituído como categoria com ‘densidade’ ou ‘definição’ jurídica suficiente para se constituir em beneficiários exclusivos de um curso. O assentado é por definição o trabalhador rural que obteve um lote de terras do programa nacional de reforma agrária. Mas mesmo dentro desta categoria, ‘trabalhador rural’, há vários outros integrantes que se veriam injustamente desigualados, ao não se lhes permitir a participação no processo seletivo em questão. Dentro da categoria ‘trabalhador rural’, e que não poderão concorrer às vagas do curso, estão por exemplo, os trabalhadores acampados à espera de um lote; os trabalhadores do movimento dos atingidos por barragens; os trabalhadores que participaram de alguma invasão a propriedade rural(que aliás devem ser excluídos do programa de reforma agrária[3]); os trabalhadores rurais e seus filhos dos minifúndios de Pelotas(que conta com uma depauperada zona rural), Capão do Leão(onde se localiza o campus da Ufpel) ou Canguçu(como se sabe, o município com o maior número de pequenas propriedades no país, mais de 50 mil). Também estariam excluídos do programa os filhos de trabalhadores urbanos, beneficiários do programa bolsa família – e são dezenas de milhares só nos municípios da Zona Sul.
Por fim, se veriam excluídos da participação no processo seletivo mesmo aqueles assentados que não tivessem o apoio ou a indicação da liderança de seu assentamento; ou que não contassem com a simpatia, ou melhor, com a aprovação do Superintendente Regional do INCRA.
35. Neste sentido, cabe trazer trecho de artigo do Prof. Neiff Satte Alam, publicado no Diário Popular de 18/07/2007, sobre as possíveis conseqüências do acolhimento do projeto desenvolvido em parceria entre INCRA e UFPEL:
“Se isto ocorrer, e parece que é o que está ocorrendo na Universidade Federal de Pelotas, estaremos frente a uma discriminação entre os agricultores tradicionais e os agricultores de assentamentos. Pior! Estará determinando, para atingir estes objetivos de discutível legitimidade, uma intervenção na Universidade ao inserir uma estrutura, no caso uma Faculdade de Medicina Veterinária, que se constituirá em um corpo estranho, com finalidades discutíveis, pois estará apenas privilegiando o segmento dos agricultores assentados e esquecendo os demais, com critérios de seleção diferenciados em relação aos utilizados para ingressos nos mais de 50 cursos superiores e podendo contratar professores por “convite”(?), metodologia que já faz parte do passado da Universidade, pois os professores somente podem ser contratados por concurso público, mesmo que temporariamente.”
36. Enfim, a cota, não sendo ‘universal’, não pode ser aplicada. Aliás, os assentados da reforma agrária, se comparados com alguns ‘grupos’ citados acima, encontram-se mesmo em melhores condições, pois já dispõem de seu lote de terra em um assentamento, contando com a assistência do INCRA.
37. Mais do que isto, por tudo quanto já se frisou, não se pode deixar de constatar a presença de forte viés político-ideológico no projeto, desde o primeiro documento elaborado pelo Instituto Educar, reconhecidamente vinculado ao MST. Ora, ali já se estabelecia pura e simplesmente a participação fundamental do MST – sim, do MST, este movimento social que sequer tem personalidade jurídica, e não do INCRA – na seleção dos interessados:
“Estes nomes serão apreciados pelo Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST nos respectivos estados, os quais indicarão os nomes selecionados ao Setor Nacional, passando assim a apreciação a Faculdade de Veterinária que fará a seleção final.”(grifei).
38. Ora, por mais que depois o projeto tenha sido alterado, por mais de uma vez, para torná-lo mais aceitável ou palatável(?) aos órgãos internos da Universidade, de cuja aprovação dependia, não se pode deixar de notar que tudo indica que, mesmo com sua atual conformação, seja decisiva a participação do interessado no MST e a aprovação de seu nome pelas lideranças do Movimento. O jornalista José Ricardo Castro parece ter bem resumido a questão, em sua coluna do Diário Popular:
“CAMINHO – É melhor estudar regularmente ou integrar um movimento social para conseguir uma vaga em curso superior na UFPel?”.
39. Pois, efetivamente, se já é inteiramente despropositado atribuir a condição de assentado da reforma agrária como critério para participar de processo seletivo exclusivo para uma universidade pública, é gritante que a pertinência a um determinado movimento social – por mais meritória que seja a sua luta, e por menos que se condenem seus métodos – não pode ser o fator determinante para ingresso na universidade pública. O que se teme é que seja justamente a pertinência ao MST e, pior do que isto, o aval e o apoio de suas lideranças, é que se transforme no requisito para o ingresso no referido curso. Aliás, a submissão aos ditames das lideranças dos movimentos sociais, e dos (já) assentados como critérios norteadores para a atuação do INCRA já foram objeto de ação civil pública recentemente proposta no Estado do Paraná, pelo Procurador da República Sérgio Arenhart, em que se viu que se têm utilizado como critério para escolha das novas famílias a serem assentadas a concordância e aceitação das demais famílias já assentadas no local em que situados os lotes para reforma agrária(cópia integral da peça inicial em anexo).
40. Neste sentido, colhe-se trecho de artigo do Professor de Direito e integrante do Conselho Universitário da Ufpel, José Fernando Gonzalez:
“(...) Estamos falando de alguma coisa muitíssimo diferente das famosas “cotas”, em que determinados candidatos recebem benefícios, submetendo-se, entretanto, ao mesmo processo de seleção que os demais: estamos falando de um negócio oneroso entre a UFPel e o Incra, para atender ao interesse de uma determinada - e muito pequena - fatia da sociedade, qual seja os “beneficiários em assentamentos de reforma agrária”. Estamos falando de entregar a “supervisão pedagógica” de um curso de graduação ao Incra e a “movimentos sociais”, ferindo de morte a autonomia da Universidade, o que nem mesmo os governos militares ousaram fazer.
O primeiro dos mandamentos constitucionais é o que assegura a igualdade de todos. Sob resguardo de que “direito” se poderia, então, consagrar o loteamento de uma escola pública, excluindo do “processo seletivo” a esmagadora maioria da população. Não há falar de inclusão ou justiça social a partir de “políticas” sectárias que, no caso em exame perante o Conselho da UFPel, nada significam senão afastar a escola pública de seu real propósito, qual seja o de oportunizar ensino gratuito - um benefício a todos assegurado a partir de seus méritos, como determinam os mais singelos conceitos de igualdade e democracia.”(artigo publicado no Diário Popular de 17/07/2007)
41. O processo seletivo em questão também afronta o princípio do art. 208, V da CF, que determina como princípio da educação que “o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, [se dará] segundo a capacidade de cada um”. Ora está longe de ser pacífico que ser integrante do MST seja critério definidor da capacidade de quem quer que seja.
Relevante frisar, ainda, que a turma do curso de Veterinária não será a única. O convênio firmado entre a Ufpel e o INCRA, prevê com clareza que ‘inicialmente’ se oferecerá o curso de Veterinária, não estando muito claro o que vem pela frente depois deste curso ‘inicial’:
“aprovação pela UFPel de programa especial de graduação em Medicina Veterinária, por meio, inicialmente de uma turma especial de 60 educandos(as), com foco no sistema de agricultura familiar, em Convênio com o PRONERA.”(cláusula 2, item b do convênio UFPel/INCRA, grifei)
42. Neste ponto, cabe destacar a posição do Conselho Federal de Medicina Veterinária, que por seu presidente, manifestou sua posição quanto ao tipo de curso em pauta na presente ação, em mensagem eletrônica enviada ao Ministério Público Federal:
“Sr. Procurador
A criação de um curso paralelo de Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Pelotas-UFPel com objetivo de atender filhos de assentados do MST se constitui em um precedente perigoso para o ensino superior no Brasil, com repercussões negativas na área econômica e social.
A Medicina Veterinária possui hoje 140 cursos em todo país, somos recordistas mundiais em instituições de ensino. Para se ter uma idéia só o Estado de São Paulo tem 38 escolas de Medicina Veterinária e os Estados Unidos da América somente 25 escolas.
Infelizmente as nossas Universidades Públicas são dependentes de recursos financeiros para desenvolver todas as atividades e não possuem a criatividade para captação de recursos na iniciativa privada.
Raros são os exemplos. Segundo o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes - ENADE, aplicado pelo MEC a Universidade Federal de Minas Gerais, primeira colocada, obtém recursos com a venda de pesquisas e a prestação de serviços. A segunda colocada que é a Universidade Estadual de Montes Claros, Minas Gerais, com recursos equivalente a 30% (trina por cento) dos recursos da Universidade e São Paulo -USP, seguindo a mesma forma de atuar, vendendo pesquisas e serviços, demonstrou que não se pode mais ficar sentado em berço esplendido aguardando recursos financeiros do Estado.
Ademais, no passado tivemos a chamada Lei do Boi, que beneficiava filhos de chacareiros, sitiantes e fazendeiros, criando discriminação na sociedade brasileira e revogada graças aos gritos da sociedade em geral.
Contando com a sua sempre pronta ação colocamos o Conselho Federal de Medicina Veterinária ao seu inteiro dispor e, caso necessite de assessoria técnica teremos o máximo prazer em colaborar.
Méd.Vet.Benedito Fortes de Arruda
Presidente do Conselho Federal de Medicina Veterinária
CRMV/Go n.º 0272
Tramitação interna do projeto
43. Além disto, mais do que a criação da turma de veterinária, em clara afronta ao princípio constitucional da igualdade e do mérito como definidor do acesso aos níveis superiores de ensino, todo o trâmite do processo levanta questões sobre a gestão interna da universidade e da possibilidade de imposição, pelos órgãos centrais da instituição, a uma única de suas unidades, a realização de um curso, mesmo contra a decisão quase unânime desta – ao que se saiba só se manifestaram a ele favoráveis o Diretor e a Vice-diretora da Faculdade de Veterinária.
No presente caso, todas as instâncias da Faculdade de Veterinária em peso rejeitaram a criação do curso; o corpo discente também – e mesmo assim, em franca desconsideração ao entendimento da unidade, o COCEPE e o Conselho Universitário lhe impõem (e só à referida unidade) a realização do curso – aniquilando e desconsiderando a voz da unidade de ensino.
Ora, o questionamento que se pode levantar é o seguinte: é legítimo, cabe ao órgão máximo da Universidade desconsiderar totalmente a manifestação da Faculdade de Veterinária, que pela coletividade de seus alunos, que por seus departamentos, que por seu Colegiado de Curso, que por seu Conselho Departamental(o seu órgão máximo) rejeitaram a realização do curso, e, mesmo assim, impor-lhe a criação da turma?
44. Ademais, percebe-se que não se trata de uma política de cotas da universidade, aplicável a todos os seus cursos – em nenhum momento, até hoje, a Universidade Federal de Pelotas, em nenhum de seus conselhos, se preocupou em implementar nenhuma política de ação afirmativa, como as que existem há vários anos em diversas universidade públicas do país. Nunca se discutiu a criação de cotas para negros, índios ou egressos de escolas públicas. A primeira discussão sobre este assunto é justamente a presente, imposta não por um programa advindo da própria universidade, mas, ao contrário, a partir do INCRA e do MST, por via do PRONERA, que é um programa para educação em reforma agrária vindo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, projeto de cuja elaboração participam os próprios interessados – basta ver que o primeiro anteprojeto do referido curso foi elaborado integralmente por uma ONG ligada ao MST com sede em um assentamento para reforma agrária.
Neste ponto, a universidade apenas está ‘comprando’ um projeto ‘importado’, que não nasceu de seus quadros, nem expressou uma iniciativa da comunidade universitária. Não se originou de um departamento da faculdade de veterinária, a partir do qual se teria procurado sensibilizar e envolver os demais elementos da comunidade acadêmica.
45. Ao contrário, é o INCRA e o Ministério do Desenvolvimento Agrário que fixam a sua política de reforma agrária, e que tentam cooptar – ou talvez a palavra seja ‘comprar’ – a criação da turma, através da criação de uma turma destinada a seu público ‘alvo’, para satisfazer os seus interesses político-ideológicos, brindando a Ufpel com a construção de um Centro de Capacitação.
46. Neste contexto, mais sobressai o caráter antidemocrático de que se reveste a decisão do Conselho Universitário, de impor, de cima abaixo, a realização do curso, à revelia da unidade de ensino. O Conselho não impõe uma nova política de cotas, de caráter geral, válida para toda a universidade. Impõe a sua criação apenas à Faculdade de Veterinária, não porque este unidade tenha levantado a necessidade ou a possibilidade deste projeto, ou por ele tenha lutado, mas porque este é o curso que o INCRA e os movimentos sociais desejam que a universidade lhes ofereça.
E, para isso, o INCRA apresenta uma ‘barganha’, para alguns verdadeiramente irrecusável: a Universidade cria o seu curso, para seus assentados, por meio de seu órgão diretivo máximo, e, em troca, a Universidade ganha um centro de Desenvolvimento Rural Sustentável.
47. A par disto, pode-se perceber que todo o trâmite administrativo do processo teve flagrantes irregularidades, expostas aliás, por dois integrantes do Conselho Universitário da Ufpel em recurso administrativo interposto ao Conselho Nacional de Educação. A atribulada e injurídica tramitação do procedimento nos órgãos internos da Universidade foi assim exposto pelos Profs. José Fernando Gonzalez e Luiz Ernani Ávila:
“Conforme se pode ver da ata nº 02/2006 (doc.6), referente à reunião do Colegiado de Curso da Faculdade de Medicina Veterinária, em 19 de setembro de 2006 o projeto em questão foi rechaçado no referido Órgão, por 10 (dez) votos contra 1 (um), sendo duas as abstenções. Depois, o mesmo projeto foi objeto de análise pelo Conselho Departamental e, segundo a ata nº 18/2006 (doc.7), relativa a reunião de 20 de dezembro de 2006, foi igualmente rejeitado pela maioria dos Conselheiros.
Mesmo diante da rejeição do projeto pelos dois principais órgãos da Unidade envolvida – a Faculdade de Medicina Veterinária – a Administração Superior da UFPel, em 28 de dezembro de 2006, firmou com o PRONERA-INCRA, na condição de interveniente, o convênio respectivo (doc. 4). Desconhecemos, diante desse quadro, que razões teriam levado a Administração Superior da UFPel a submeter o projeto à avaliação na Faculdade de Medicina Veterinária, já que depois desconsiderou o repúdio da Unidade e firmou mesmo assim o convênio.
3.1. – A tramitação no COCEPE.
O convênio em questão foi protocolado na Secretaria dos Conselhos Superiores em data de 08/02/2007, recebendo a numeração referida ao início desta peça (doc. 8). Nessa mesma data, coincidentemente, havia reunião do COCEPE, tendo então a matéria sido incluída no item 09, sob título de OUTROS ASSUNTOS. Temos, assim, que um projeto de extrema repercussão, não só no seio da UFPel mas também em toda a comunidade universitária do País, foi açodadamente examinado pelo Conselho de Ensino, sem pauta prévia, inserido em ...outros assuntos.
E mais. Examinando-se a ata respectiva, nº 01/07 (doc. 9), fácil perceber que o Relator, cuja identidade sequer constou do documento, não se houve com felicidade ao traduzir o conteúdo do que relatava. Deflui-se, ao perfunctório exame, que tudo não passou de um jogo de palavras sem a mínima concatenação de idéias, prestando-se, inclusive, à indução em erro de algum dos Conselheiros. Mesmo assim, o projeto em questão – que só identificamos pelo número – restou aprovado naquele Conselho. Nisso – e só nisso – reside já flagrante ilegalidade, porquanto o COCEPE só poderia apreciar o projeto se provocado mediante recurso, vez que duplamente rejeitado na Faculdade de origem.
E ainda mais. A decisão do COCEPE, tomada em 08 de fevereiro deste ano, até agora não foi publicada, nos termos em que determina o art. 42 do Regimento Geral; dela, assim como da ata correspondente, os signatários só tiveram conhecimento no dia 25 de julho de 2007, quando garimpavam informações a respeito da tramitação do assunto nas vias administrativas da UFPel. A requerimento dos signatários (doc. 10), a Secretaria dos Conselhos emitiu certidão a respeito (doc. 11); referido documento silencia a respeito da publicação, embora isso tenha sido expressamente requerido à Senhora Secretária; deduz-se, portanto, que a “decisão” do COCEPE não foi publicada. E ausente publicação não fluiu o prazo recursal, nos termos do que faculta o art. 20, parágrafo único, do Regimento Geral.
3.2. – A tramitação no CONDIR.
A Administração Superior da UFPel firmou o convênio em questão sem a prévia autorização do Conselho Diretor da Instituição, como lhe seria exigível segundo o art. 14, inc. III, do Regimento Geral, que assim estabelece:
Art. 14. Compete ao Conselho Diretor:
..........................................
III – aprovar a realização de convênios ou acordos com entidades públicas ou privadas, que importem em compromissos extra orçamentários para a fundação.
Decerto que a Administração tomou em conta o disposto no parágrafo único desse mesmo artigo, agindo ad referendum do Conselho Diretor. Não vemos, todavia, onde estaria a emergência de que trata a lei, tendo em vista que o projeto, objeto do convênio, fora encaminhado para exame na Faculdade de Veterinária quatro meses antes, tempo mais do que suficiente para que o CONDIR fosse consultado e examinasse em profundidade a tão importante matéria de que tratava o projeto em tramitação nos Conselhos da Faculdade de Veterinária.
Mas, ainda que emergência houvesse – e não havia – a Administração teria de submeter o convênio a exame do Conselho Diretor num prazo de 10 (dez) dias, conforme determina o Regimento Geral. Consta do parágrafo único do art. 62, o seguinte:
Art. 62. Em situação de emergência e no interesse superior da Universidade, o Reitor poderá tomar decisões ‘ad referendum’ do Conselho Diretor da Fundação, Conselho Universitário e Conselho Coordenador do Ensino, da Pesquisa e da Extensão.
Parágrafo único. O Conselho respectivo apreciará o ato em votação secreta dentro de dez dias e a não ratificação por maioria simples acarretará sua nulidade e ineficácia ex tunc. (os grifos são nossos).
Entretanto, a Administração Superior da Instituição, incorrendo em manifesta ilegalidade, não cumpriu esse comando do Regimento Geral. O convênio só foi submetido ao Conselho Diretor em 04 de junho de 2007, mais de cinco meses depois de firmado; e lá não houve ainda deliberação, pois que sobrestada a apreciação por pedido de vista formulado pelo Conselheiro Eduardo Duval, como consta da certidão fornecida a nosso requerimento pela Secretaria dos Conselhos (doc. 11).
O mais “intrigante”, entretanto, é que o Conselho Diretor reuniu-se em 13 de março de 2007, sem que da pauta/convocação (doc. 12) constasse o malsinado projeto sobre a turma de assentados na Faculdade de Veterinária. Desconhecemos que razões poderiam ter incidido para que a Administração firmasse o convênio em 28 de dezembro de 2006 e fosse buscar o referendum somente na 2ª reunião do CONDIR no ano seguinte, em manifesto desrespeito ao ordenamento.
3.3. – A tramitação no CONSUN.
Pois nesse quadro a questão chegou ao Conselho Universitário, órgão máximo da Instituição. Desconhecemos a que título isso teria ocorrido, mas é imperioso reconhecer a ilegalidade dessa providência. Senão vejamos:
O convênio firmado entre a Administração Superior da UFPel e o PRONERA-INCRA, que consiste em a criação de turma especial de 60 alunos da Faculdade de Medicina Veterinária, impõe modificações na área do ensino, pois eleva o número de vagas na Unidade respectiva, direcionando-as a público determinado; estabelece regras “especiais” de seleção e impõe modificações curriculares.
Tais implicações na área do ensino legitimariam a interveniência do COCEPE no referido processo. Entretanto, pela interpretação sistemática das normas do Regimento da Universidade, tem-se que a matéria aportou ao referido Órgão fora da regularidade administrativa, vez que repudiada no Colegiado de Curso e no Conselho Departamental da Unidade respectiva; tem-se, com isso, que somente o exercitamento da via recursal legitimaria a remessa do tal projeto ao COCEPE; e isso não aconteceu. Então, por maior que possa ser o “interesse” da Administração Superior no sentido de emprestar legitimidade ao convênio firmado, isso não justifica – e muito menos autoriza – o exame da matéria sob tais vícios de forma.
E se o exame da questão pelo Conselho de Ensino deu-se em situação de irregularidade/ilegalidade, com maior certeza se pode afirmar que, uma vez “aprovado” o projeto no COCEPE, como ocorreu, inexistiria justificativa para que fosse submetido a exame perante o Conselho Universitário, senão pela via recursal (art. 18, inc. II, do Regimento Geral). E novamente é necessário reconhecer que recurso não houve, embora possa ainda existir pela ausência de publicação até esta data, como já referimos.
De outra parte, inegáveis as implicações patrimoniais decorrentes do convênio firmado pela Administração Superior da Universidade com o PRONERA-INCRA. E tanto isso é verdadeiro que a Administração, ainda que muito tardiamente, levou a matéria ao Conselho Diretor, mas lá não obteve, até o momento, qualquer decisão. E antes que exista uma decisão no Conselho Diretor acerca do assunto, o exame pelo Conselho Universitário nada representa senão uma inversão sem precedentes na tramitação, segundo as disposições regimentais e até a própria lógica.
Pois logo ao início da reunião do CONSUN, no dia 20 de julho último, os ora signatários, preocupados com esse conjunto de irregularidades, propuseram ao Presidente que fosse observado o art. 38 do Regimento Geral. O que se pretendia era que o projeto, assim como as circunstâncias de sua tramitação, fosse submetido à Comissão de Legislação e Normas. Essa proposta, entretanto, foi rechaçada diante dos argumentos expendidos pelo Presidente, no sentido de que a matéria era de tal repercussão que não caberia qualquer medida de que implicasse adiamento.
Em tais circunstâncias o projeto foi à votação perante o Conselho Universitário, sendo aprovado como demonstra a certidão fornecida pela Secretaria dos Conselhos da UFPel (doc. 13). A ilegalidade quanto ao procedimento administrativo adotado pela Administração Superior, entretanto, é de clareza solar, consubstanciada pelo desatendimento aos comandos regimentais.”
48. Também por todos os motivos elencados nas razões, cabe a anulação das decisões do Conselho Universitário e do Cocepe da Universidade Federal de Pelotas que aprovaram a realização do curso.
Supervisão pedagógica do curso pelo INCRA e movimentos sociais – leia-se MST. Contratação de professores ‘afinados ideologicamente’ com a proposta do curso sem submissão a concurso público
49. Mas não é apenas isto. Não se trata apenas da criação de um curso, ou de uma turma especial. Trata-se de cambiar a alma da universidade. Assim, além do processo seletivo especialíssimo a que terão que se submeter os interessados, além das flagrantes ilegalidades na tramitação do projeto de criação desta turma exclusivíssima, também há a necessidade de supervisão pedagógica do INCRA e dos movimentos sociais para sua realização – e quem sabe para garantir a aprovação dos alunos selecionados? -, em verdadeira afronta aos princípios da autonomia pedagógica da universidade.
50. Para a universidade, talvez seja isto o mais grave, se é que se pode comparar e mensurar tamanhos absurdos. As cotas para os assentados prejudicam a sociedade como um todo, na medida em que seus integrantes não mais disporão de condições de disputar um processo seletivo em igualdade de condições. Pior do que isto, nem poderão dele participar. Mas para a universidade, é gravíssimo que o seu Conselho de Ensino e Pesquisa(COCEPE) e seu Conselho Universitário permitam que o INCRA e os movimentos sociais, ou melhor, que o MST, tenha poder de ditar critérios pedagógicos aos professores integrantes dos quadros da universidade. Cabe transcrever trecho de artigo jornalístico subscrito por 26 docentes da faculdade de veterinária:
“A sociedade também outorgou à Universidade Pública a responsabilidade de programar, conduzir e avaliar o processo de formação dos cidadãos universitários, respeitando sua individualidade quanto a sua ideologia e religião, de forma que nenhuma delas fosse determinante de sua exclusão ou de sua inclusão.
O Pronera, através de seu Manual de Operações, nega as conquistas que a Democracia trouxe à vida universitária brasileira. Elas restringem o ingresso a uma fatia da população através da indicação dos candidatos ao vestibular, elas tiram da universidade pública sua função de organização didática desde que introduz a figura da Comissão Pedagógica Nacional com as funções de coordenação didático-pedagógica, de definir os indicadores de desempenho e os instrumentos de avaliação e determina as metodologias e os instrumentos pedagógicos. E introduz a figura dos movimentos sociais e sindicais dos trabalhadores e trabalhadoras rurais com a atribuição de participar da elaboração e de acompanhamento da execução dos projetos educacionais.Por isto, reafirmamos nossa rejeição à proposta de criação do curso paralelo de Medicina Veterinária.”(publicado no Diário Popular de 19/07/2007).
51. Para completar o quadro, há a expressa previsão no projeto de burla ao princípio do concurso público, princípio basilar da administração pública inscrito no art. 37, incs. I e II da Constituição Federal – uma especialidade desta administração da Ufpel, haja vista as centenas de funcionários, muitos deles parentes de professores e pró-reitores, em exercício em suas ‘fundações de apoio’ -, pela participação de professores ‘convidados’ para ministrar aulas, como constou expressamente do item 11 do projeto aprovado pelo CONSUN:
“11. CORPO DOCENTE.
Fará parte do corpo docente do curso os docentes da UFPel e, eventualmente, professores convidados de outros instituições de ensino superior e profissionais autônomos devidamente habilitados e com perfil condizente com a proposta do curso. Fica a cargo da coordenação do curso convidar e/ou selecionar os docentes colaboradores. (grifamos).
Faltou mencionar a necessária aprovação pelas lideranças do MST... Aliás, o Sr. Reitor já havia mencionado a possibilidade de contratação dos professores por meio de bolsas, que é o nome mais elegante que se procura atribuir a boa e velha praxe de contratação sem concurso:
“(...) o Reitor esclarece que os professores da faculdade não serão obrigados a dar aulas no curso. Há a possibilidade de contratação de docentes de fora, por meio das bolsas.(...)”(Diário Popular de 13/07/07)
52. Por todo o exposto, a ‘ação afirmativa’ em vias de implantação e aprovada pelo Conselho Universitário da UFPEL não se justifica, porquanto é indiscutível a dificuldade em todo o país de acesso à universidade pública por parte dos alunos provenientes de instituições públicas de ensino fundamental e médio, integrantes dos mais diversos grupos sociais, além dos familiares de assentados da reforma agrária.
53. A doutrina mais abalizada é pródiga em defender a intervenção do Judiciário para a invalidação de atos administrativos praticados em dissonância ao princípio da razoabilidade, o qual conforme lição de Luís Roberto Barroso “é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça"[4](grifado). E segue o jurista citado até concluir que:
"O princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao judiciário invalidar atos legislativos ou atos administrativos quando: (a) não haja relação de adequação entre o fim visado e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha"(Ob. cit. p. 234)(grifado).
54. Seguindo-se os termos discriminatórios do projeto da Ufpel/INCRA, ofender-se-ia o conceito de igualdade material perseguido pela Constituição e, por conseguinte, diversos de seus dispositivos, a exemplo do artigo 19, inciso III[5], bem como a vários princípios constitucionais, implícitos e explícitos, como os da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade. Por isso mesmo, não cabe argumentar que a intromissão do Poder Judiciário nessa questão tenda a violar a discricionariedade administrativa. O controle da legalidade dos atos administrativos pelo Judiciário não usurpa a função administrativa, pois que controlar a legalidade dos atos, não importa se discricionários ou vinculados, é função própria desse Poder.
55. A autonomia universitária não obsta o controle de disposições ilegais dos atos administrativos, a teor do que preceitua o Colendo Supremo Tribunal Federal[6], de forma que o projeto de criação da turma especial do curso de veterinária pela UFPEL, porque não guarda harmonia com o plano constitucional, deve ser objeto de controle pelo Judiciário para realização das devidas correções.
IV. PEDIDOS
PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA
56. O artigo 273 do Código de Processo Civil dispõe que:
“Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)”
57. A verossimilhança das alegações levantadas pelo Ministério Público encontra-se amplamente demonstrada, pois que a prova inequívoca dos fatos decorre da plausibilidade do direito aqui invocado, quando confrontado com as disposições discriminatórias do programa a ser implementado pela UFPel em conjunto com o INCRA e os movimentos sociais. Ampara-se a verossimilhança do alegado na flagrante ofensa aos dispositivos que perseguem a implementação da igualdade material em nosso ordenamento jurídico-constitucional, já citados no discorrer dos argumentos supra expostos, especialmente o princípio da igualdade, inclusive na sua acepção de isonomia de condições de acesso ao ensino, além da injustificada criação, por parte da ação afirmativa impugnada, de distinção irrazoável entre brasileiros, vedada no artigo 19, III, da Constituição da República.
58. Assim também, facilmente se percebe o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação caso a tutela pleiteada não seja, desde logo, concedida, pois, diante da gravidade dos fatos expostos, a demora do provimento judicial poderá implicar prejuízo de difícil reparação para todos aqueles que serão impedidos de participar do processo seletivo, por não serem assentados ou filhos de assentados nos programas de reforma agrária do governo federal.
59. Quanto a isso, pela relevância do tema, vale transcrever ensinamento de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, quando trataram da irreversibilidade do provimento antecipado de que trata o § 2º do citado artigo 273:
“ Em virtude dessa regra, seria possível pensar que o juiz não pode conceder tutela antecipatória quando ela puder causar prejuízo irreversível ao réu. Contudo, se a tutela antecipatória, no caso do art. 273, I, tem por objetivo evitar um dano irreparável ao direito provável (é importante lembrar que o requerente da tutela antecipatória deve demonstrar um direito provável), não há como não admitir concessão dessa tutela sob o simples argumento de que ela pode trazer um prejuízo irreversível ao réu. Seria como dizer que o direito provável deve sempre ser sacrificado diante da possibilidade de prejuízo irreversível ao direito improvável” (grifado).[7]
60. Importa, também, observar que a concretização da tutela pretendida é totalmente possível de realização pela UFPEL, pois ainda não foi publicado o edital do processo seletivo referido. Por outro lado, vê-se, conforme a já referida notícia publicada no site do Ministério do Desenvolvimento Agrário e no jornal Diário da Manhã do último sábado(30.07.2007), é iminente a realização do processo seletivo, a ser iniciado no próximo mês de setembro:
“(...) A proposta prevê a oferta de 60 vagas para assentados credenciados pelo Incra. A previsão é de que as provas sejam realizadas até setembro, em Pelotas (RS). Qualquer assentado ou filho de assentado inscrito no Incra pode se candidatar às vagas, desde que tenha sido indicado pelo assentamento onde mora e obtenha, do superintendente regional do Instituto, uma carta de anuência para poder se inscrever.(...)”
61. Assim, preenchidos todos os requisitos legais para concessão da antecipação dos efeitos da tutela, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL que seja concedida para:
a) proibir à Ufpel e ao INCRA a realização de processo seletivo de ingresso na Universidade com indicação de candidatos pelo INCRA, ou com restrição a sua participação a assentados ou filhos de assentados dos programas de reforma agrária do INCRA, afastando-se a aplicação pela Universidade do item 2 do projeto do Curso de Graduação em Medicina Veterinária, o qual determina “o processo de seleção seguirá critérios definidos pela Universidade Federal de Pelotas. Os candidatos, no momento da inscrição no processo seletivo, deverão comprovar vinculação às áreas de reforma agrária, unicamente, mediante apresentação de atestado emitido pelo INCRA, indicando que o mesmo seja beneficiário de assentamento da reforma agrária.(...)”, em função da nulidade da cláusula 2ª, do item b do convênio firmado entre o INCRA e a UFPel(“aprovação pela UFPel de programa especial de graduação em Medicina Veterinária, por meio, inicialmente de uma turma especial de 60 educandos(as), com foco no sistema de agricultura familiar, em Convênio com o PRONERA.”).
b) determinar que a realização do processo seletivo referido seja aberto a todos os cidadãos brasileiros interessados e que tenham concluído o ensino médio, nos mesmos moldes do processo seletivo regular realizado para todos os outros cursos da Ufpel, conforme previsão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (“Art. 44. A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas: (...)II - de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo;) e do Regimento Geral da Ufpel(Art. 136. A admissão aos cursos de graduação se fará mediante concurso Vestibular, aberto a quantos hajam concluído o segundo grau ou estudos equivalentes.) (grifei).
c) a determinação de que a publicação dos editais do referido processo seletivo se realize nos mesmos moldes de todos as demais seleções para ingresso na Ufpel.
d) a proibição de o INCRA e de qualquer movimento social de participar da supervisão pedagógica de qualquer curso no âmbito da Ufpel.
e) a proibição de contratação de professores pela Ufpel para o presente curso ou para qualquer outro mediante o oferecimento de ‘bolsas’, permitindo-se apenas a realização de regular concurso público, nos moldes do art. 37, II da Constituição Federal.
DO PEDIDO DEFINITIVO
62. Por todo o exposto, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, ainda:
a)citação dos réus, UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS E INCRA para apresentar contestação, sob pena de revelia;
b)confirmação da tutela antecipada na sua integralidade, reconhecendo a incompatibilidade, com a ordem constitucional vigente, da discriminação contida no ato de restringir a participação no processo seletivo do curso de Medicina Veterinária a assentados ou filhos de assentados do programa de reforma agrária do governo federal, declarando a nulidade da cláusula 2ª, item b do convênio RS/4330/2006/2006 firmado entre o UFPel e o INCRA, e também para:
b.1) proibir à Ufpel e ao INCRA a realização de processo seletivo de ingresso na Universidade com indicação pelo INCRA, e/ou com restrição a sua participação a assentados ou filhos de assentados dos programas, afastando-se a aplicação pela Universidade do item 2 do projeto do Curso de Graduação em Medicina Veterinária, o qual determina “o processo de seleção seguirá critérios definidos pela Universidade Federal de Pelotas. Os candidatos, no momento da inscrição no processo seletivo, deverão comprovar vinculação às áreas de reforma agrária, unicamente, mediante apresentação de atestado emitido pelo INCRA, indicando que o mesmo seja beneficiário de assentamento da reforma agrária.(...)”
b.2) determinar que a realização do processo seletivo referido seja aberto a todos os cidadãos brasileiros interessados e que tenham concluído o ensino médio, nos mesmos moldes do processo seletivo regular realizado para todos os outros cursos da Ufpel.
b.3) a determinação de que a publicação dos editais do referido processo seletivo se realize nos mesmos moldes de todos as demais seleções para ingresso na Ufpel.
b.4) a proibição de o INCRA e de qualquer movimento social de participar da supervisão pedagógica de qualquer curso no âmbito da Ufpel.
b.5) a proibição de contratação de professores pela Ufpel para o presente curso ou para qualquer outro mediante o oferecimento de ‘bolsas’, permitindo-se apenas a realização de regular concurso público, nos moldes do art. 37, II da Constituição Federal.
c)a condenação dos requeridos nos encargos da sucumbência;
d)a dispensa dos pagamentos de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, nos termos do art. 18 da Lei n.º 7.347/85, e do art. 87 do CDC.
Protesta-se provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos.
Dá-se à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
PELOTAS, 30 de julho de 2007
MAX DOS PASSOS PALOMBO
Procurador da República
ANEXO:
1- Procedimento Administrativo nº 1.29.005.000116/2007-18.
[1] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:(...) III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos
[2] Conforme claramente exposto na notícia do jornal Diário da Manhã de 28/07/2007, a partir de notícia elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.
[3] “§ 7o Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.”
[4] Interpretação e Aplicação da Constituição, p.215.
[5] Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
[6] “...O princípio da autonomia das universidades (CF, art. 207) não é irrestrito, mesmo porque não cuida de soberania ou independência, de forma que as universidades devem ser submetidas a diversas outras normas gerais previstas na Constituição...”(grifado)(ADI-MC 1599 / UF - UNIÃO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA De INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA. Julgamento: 26/02/1998. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
[7] In Manual do Processo de Conhecimento, p. 272, 3ª edição.
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