Está em fase final de apreciação pela Justiça a ação (veja a íntegra abaixo, em itálico) interposta pelo promotor de Justiça Jaime Chatkin que pede a exoneração de pelo menos 92 funcionários comissionados categoria CC3 (Assessor Técnico III) da Prefeitura de Pelotas. Se a ação for julgada procedente, serão eliminados - em 60 dias - ao todo 167 cargos, que serão liberados para preenchimento por concurso público. Será o fim do "trem da alegria" na prefeitura pelotense. A alegação do promotor Chatkin é de que estes funcionários não preenchem os requisitos para serem contratados sem concurso público.
Entre os comissionados que podem perder o emprego estão o motorista do prefeito, atendentes, secretárias e inúmeros outros funcionários que não são de chefia e que deveriam ser preenchidos por concurso (veja depoimentos na ação, logo abaixo). De acordo com um funcionário (fls. 115 da ação) “o depoente é motorista do prefeito municipal de Pelotas. Ocupa cargo de Assessor Técnico III, lotado no Gabinete do Prefeito, desde 29/1/05. Seu chefe imediato é o sr. prefeito municipal. Sua função é dirigir o veículo oficial do Prefeito e não há subordinados ao depoente.”
De acordo com a ação, as leis que criaram os cargos de Assessor Técnico III da Prefeitura de Pelotas não são contempladas pela Constituição Federal ou pela Estadual, e portanto o MP quer que a Justiça ordene "o desfazimento de todas as nomeações (proibindo que outras sejam feitas em substituição).
O artigo 32 da Constituição Estadual determina que os cargos em comissão sejam criados por lei que defina suas atribuições de chefia, direção ou assessoramento, o que evidentemente não ocorre em Pelotas. A Prefeitura de Pelotas apresentou defesa no mês passado e a sentença deve sair em breve.
De acordo com o documento "a desejada impessoalidade da administração é prejudicada pela existência de um número exagerado de servidores que são escolhidos sem seleção ou concurso público, mas por critérios meramente políticos, quando não seja por motivos ainda menos nobres. A acessibilidade aos cargos públicos é burlada de forma evidente. Assim, não há mais como permanecer uma situação tão irregular".
Para o Ministério Público, a solução é a abertura de concurso público para preenchimento das vagas. "Não há apenas ofensa manifesta ao princípio da legalidade. As repartições públicas acabam tendo uma rotatividade enorme de servidores a cada novo administrador que assume a prefeitura, com prejuízo grave à eficiência do órgão público. Há desmotivação crescente dos servidores concursados ao perceberem cargos com remuneração maior serem preenchidos por pessoas sem qualificação técnica, ao passo que os funcionários efetivos e que permanecerão todas suas vidas profissionais na Prefeitura não são valorizados", afirma o promotor Chatkin na ação.
A auditoria do Tribunal de Contas do Estado também analisou os cargos em comissão CC3 e avaliou que “do exposto, conclui-se que a manutenção dos referidos cargos em comissão constitui-se em burla ao instituto do concurso público, conforme determina a Constituição Federal, em seu artigo 37, inciso II”, e, a seguir, que se está diante de “flagrante ilegalidade” (fl. 201)" .
A ação interposta pelo promotor Chatkin é implacável. "Enfim, nenhum dos cargos que são objetos desta ação se amoldam ao conceito de cargos em comissão admitidos pela Constituição Federal, eis que as atividades podem perfeitamente ser executadas por servidores do quadro de efetivos, uma vez que inexiste a necessidade de que o sejam por pessoas de confiança absoluta do Prefeito Municipal, assim entendida aquela confiança cuja ausência seria capaz de colocar em risco as diretrizes políticas traçadas para o órgão público. Ao invés de, por exemplo, criar-se um cargo efetivo de recepcionista, opta-se pela criação de um Chefe de Serviço, procurando, através de uma denominação falaciosa, caracterizar caso de provimento em comissão. Desse modo, os “chefes” acabam por ser, na verdade, os executores do serviço público, e não os transmissores de diretrizes políticas. Foi dada uma elasticidade indevida e aberrante ao dispositivo constitucional, desvirtuando-o de modo a possibilitar a criação de inúmeros cargos em comissão, nos quais se desempenham funções que deveriam ser atribuídas a servidores de provimento efetivo (agentes administrativos, auxiliares técnicos etc.).
Por conta dessa ação - que não foi noticiada por nenhum órgão de Imprensa de Pelotas e dificilmente será até que a sentença seja efetivamente publicada - os ânimos da Prefeitura andam um pouco acirrados e muita gente perdeu o sono por lá. Pudera: como explicar aos "sortudos" que foram considerados "de confiança" que podem perder o emprego de repente? Como dizer que o "trem da alegria" deixará de apitar? A lei, srs. administradores pelotenses, é universal. Serve para todos. Ousar ignorá-las é próprio de déspotas e tiranos. E o país já não se curva diante deles há tempos. Bravo, dr. Chatkin. É de homens assim que o país precisa.
Veja, abaixo, a íntegra da ação (os grifos são nossos):
Juiz de Direito de Vara Cível da Comarca de Pelotas:
O Ministério Público, pelo agente signatário, legitimado pelo artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, e com base no inquérito civil nº 00824.00123/2006, propõe a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido liminar contra o
Município de Pelotas, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Praça Coronel Pedro Osório nº 101, podendo ser citado na pessoa do Procurador-Geral, Dr. Saad Salim, com base nos seguintes fatos e fundamentos:
1. Os cargos em comissão da Prefeitura de Pelotas foram criados pelas Leis 3338/90, 3380/91, 3399/91, 3643/93, 3828/94, 4436/99 e 4779/02, com a alteração dada pela Lei 5184/05, e são os seguintes, em ordem decrescente de remuneração:
- 21 cargos de nomenclatura CCS, ocupados por Secretários Municipais;
- 25 cargos de nomenclatura CCC, denominados de Coordenador Técnico Administrativo;
- 95 cargos de nomenclatura CC1, chamados de Assessor Nível I;
- 148 cargos de nomenclatura CC2, chamados de Assessor Nível II;
- 167 cargos de nomenclatura CC3, chamados de Assessor Nível III ou Chefes de Setor (165 consolidados na Lei 5184/05, fls. 203/204, e 2 criados pela Lei 4779/02).
O objeto desta ação civil pública reside na inconstitucionalidade dos cargos em comissão CC3 existentes no âmbito da Prefeitura de Pelotas, como se verá a seguir.
Importante frisar que estes cargos também podem ter suas atribuições desempenhadas por servidores efetivos mediante concessão de Função Gratificada (FG3); atualmente, há 70 servidores com FG3 na Prefeitura, 92 cargos em comissão símbolo CC3 (v. relação das fls. 224/227) e 5 cargos vagos.
2. Sabe-se que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos...” (art. 37, II, Constituição Federal).
O desejo do constituinte, ao estabelecer a regra do concurso para acesso ao serviço público, como não poderia deixar de ser, não é apenas o de selecionar o mais competente, mas também o de preservar o princípio da impessoalidade da administração.
As exceções para tal regra geral e impositiva são os casos de nomeações para cargos em comissão (art. 37, II, Constituição Federal) e as contratações por prazo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (artigo 37, IX, Constituição Federal).
No que se refere aos cargos em comissão, tidos como de livre nomeação e exoneração, a doutrina e a jurisprudência trataram de estabelecer sua devida aplicabilidade e pertinência, para funções de chefia, direção ou assessoramento superior, tais como as de um Secretário Municipal, Procurador-Geral do Município ou Diretor de Fundação Pública.
Conforme ensina HELY LOPES MEIRELLES (in "Direito Administrativo Brasileiro", 23ª ed., São Paulo: Malheiros, p.81):
“A investidura efetiva é própria dos cargos do quadro permanente da Administração, ocupados pela grande massa do funcionalismo, com provimento inicial por concurso, para o desempenho de atividades técnicas e administrativas do Estado, com caráter de exercício profissional. Diversamente, a investidura em comissão é adequada para agentes públicos de alta categoria, chamados a prestar serviços ao Estado, sem caráter profissional, e até mesmo de natureza honorífica e transitória. Tais agentes, em sua maioria são delegados ou representantes do Governo, pessoas de sua confiança, providos nos altos postos do Estado, para o desempenho de funções diretivas ou missões transitórias características de múnus público.”
Segundo Diógenes Gasparini (“Direito Administrativo”, 3a edição), “os cargos de provimento em comissão são próprios para a direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação, ajudando-a a promover a direção superior da Administração. (...) A autoridade nomeante não pode se desfazer desse poder de dispor dos titulares de tais cargos, sob pena de não poder contornar dificuldades que surgem quando o nomeado deixa de gozar de sua confiança”.
Adilson Abreu Dallari, citando Márcio Cammarosano, complementa: “Não é, portanto, qualquer plexo unitário de competências que reclama seja confiado seu exercício a esta ou àquela pessoa, a dedo escolhida, merecedora da absoluta confiança da autoridade superior, mas apenas aqueles que dada a natureza das atribuições a serem exercidas pelos seus titulares, justificam exigir-se deles não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior” (“Regime Constitucional dos Servidores Públicos, pág. 41, 2a edição, 1992, Editora Revista dos Tribunais).
Cumpre citar a lição sempre presente nas ações diretas de inconstitucionalidade que o Ministério Público vem promovendo, com êxito, perante o Tribunal de Justiça, a respeito do tema:
“A partir de tais conceituações, verifica-se que o cargo em comissão compreende quatro idéias: 1) a de excepcionalidade, 2) de chefia, 3) de confiança e 4) de livre nomeação e exoneração.
“Excepcionalidade, porque na administração pública a regra é que os servidores ocupem cargos de provimento efetivo, submetendo-se a concurso público para admissão, de modo que somente excepcionalmente, em número e para situações limitadas, podem ser criados e providos cargos em comissão.
“Chefia, porque os cargos em comissão devem ser utilizados para funções estratégicas da Administração Pública, de coordenação, direção e assessoramento superior, de modo que o Poder Público possa agir de forma una no cumprimento de suas finalidades, sem desvio das metas e padrões estabelecidos pelos Agentes Políticos incumbidos da escolha dos comissionados.
“São, na verdade, verdadeiros representantes dos agentes políticos, que, subordinados às diretrizes e ordens dadas por estes, ficam incumbidos de dirigir a máquina administrativa e os demais funcionários.
“Por isso, também é inerente aos cargos em comissão a idéia de confiança do agente político para com o comissionado, bem como a possibilidade de livre nomeação e exoneração, já que, uma vez perdida a confiança ou não sendo bem conduzida a chefia, podem ser livremente demitidos, sem a necessidade de processo administrativo. Tal possibilidade está contemplada no artigo 37, inciso II, parte final, da Constituição Federal, e repetido pelo artigo 32 da Constituição Estadual, acima citado, o qual dispõe que a investidura em cargo ou emprego público depende de concurso público, salvo quanto as nomeações para cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração.
“Veja-se que a confiança inerente ao cargo em comissão não é aquela comum, exigida de todo o servidor público, mas a especial, essencial para a consecução das diretrizes traçadas pelos agentes políticos. Essa confiança por último tratada é própria dos altos cargos, em que a fidelidade às diretrizes traçadas pelos agentes políticos, o comprometimento político, a lealdade a estes é essencial para o próprio desempenho da função.” (v. por ex.,ADIN 70008013906).
Tais ensinamentos foram expressamente levados ao texto constitucional, através da Emenda n° 19, que deu ao artigo 37, inciso V, da Carta Magna, a seguinte redação:
“V – as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”.
Anote-se que a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul já preceituava em seu artigo 32 que “os cargos em comissão, criados por lei em número e com remuneração certos e com atribuições definidas de direção, chefia ou assessoramento, são de livre nomeação e exoneração...”, explicitando, em seu artigo 20, § 4o, que os mesmos se destinam à “transmissão das diretrizes políticas para execução administrativa e ao assessoramento”.
Somente para essas hipóteses excepcionais está autorizada a criação de cargos em comissão, pois estes, sendo de livre nomeação e exoneração, afastam a necessidade do concurso público e da estabilidade, garantias contempladas nas Constituições Federal e Estadual em benefício da comunidade, para permitir o amplo acesso dos cargos públicos às pessoas que preencham os requisitos estabelecidos em lei e a atuação impessoal dos servidores, sujeitos apenas à lei, não a pressões políticas.
A possibilidade de criação dos cargos em comissão deve ser, pois, limitada, sendo tal limitação a garantia do direito da comunidade ao amplo acesso aos cargos públicos e à estabilidade, ambos essenciais à impessoalidade da administração pública e ao bom funcionamento desta.
3. Pois bem, no que diz respeito aos cargos em comissão impugnados, não se revestem eles das características e exigências constitucionais, quais sejam, direção, chefia ou assessoramento, vez que voltados a atividades permanentes de mera execução.
Na Promotoria de Justiça foram ouvidos diversos ocupantes de cargo em comissão de Assessor Técnico III, os quais relataram suas atribuições.
Cumpre transcrever alguns depoimentos, em que se percebe o exercício de tarefas que jamais poderiam ensejar a excepcional criação de um cargo de confiança:
Ø “...trabalha como secretária-executiva do COMPAM... A depoente faz as atas, convocações, seja por email, seja por telefone. Acompanha as reuniões e vai fazendo as devidas anotações. Não tem nenhum funcionário que lhe seja subordinado.” (fl. 96);
Ø “O depoente trabalha em serviços gerais dentro da Secretaria, não faz trabalho externo. O depoente recebe materiais de manutenção e encaminha para os funcionários que utilizarão nos estabelecimentos mantidos pela Secretaria. Eventualmente o depoente ainda pode fazer algum conserto interno, se for necessário e o pessoal “estiver na rua”. O depoente não tem nenhum funcionário que lhe seja subordinado. Antes de entrar para a Prefeitura o depoente era frentista em um posto de gasolina.”(fl. 96-verso);
Ø “O depoente trabalha como atendente, na Central de Atendimentos da Secretaria. É um atendimento de balcão. O atendente presta informações gerais sobre assuntos como IPTU, Alvarás e outros tributos municipais daquela Secretaria.” (fl. 97);
Ø “A depoente trabalhava na Casa dos Conselhos, com atribuições administrativas dos Conselhos Municipais e do Conselho Tutelar. Elaborava ofícios, editais, convocações, atestados de entidades, ajudava a organizar seminários, sempre trabalhando na parte burocrática.” (fl. 98);
Ø “A depoente trabalha no PAR, diretamente subordinada ao Secretário, fazendo as funções de atender ao público, inscrições e telefone todos em relação ao PAR. Não há funcionários subordinados à depoente...”(fl. 100);
Ø “O depoente trabalha como controlador de planilha dos carros da Secretaria, trabalha direto com a Secretária. O depoente cumpre quarenta horas semanais. O depoente trabalha na Secretaria da Cidadania, Deodoro esquina Três de Maio. O depoente é servente de obra de profissão, já trabalhou como motorista, tratorista, ajudante e serviços gerais da Prefeitura.” (fl. 101).
Ø “O depoente trabalha como coordenador, chefe, da fiscalização, da SMHO, trabalha direto com o Secretário, é a ele que se “reporta”. Atua juntamente com o fiscal, acompanha na fiscalização, não pode fazer a fiscalização porque não é fiscal de ‘carreira’.” (fl. 102);
Ø “O depoente trabalha como responsável pelo Almoxarifado da Secretaria de Serviços Urbanos, trabalha direto com o chefe de gabinete e o Secretário. Atua controlando o estoque e entregando e recebendo mercadorias, ferramentas, material de escritório, peças etc. Trabalha sozinho, não há funcionários subordinados ao depoente.” (fl. 104);
Ø “O depoente é motorista do Prefeito Municipal de Pelotas. Ocupa cargo de Assessor Técnico III, lotado no Gabinete do Prefeito, desde 29/1/05. Seu chefe imediato é o Sr. Prefeito Municipal. Sua função é dirigir o veículo oficial do Prefeito e não há subordinados ao depoente.” (fl. 115);
Ø “Sua função é atendimento ao público, encaminhando para preenchimento de ficha sócio-econômica, coordena uma equipe que é composta por duas assistentes sociais do quadro da Prefeitura, efetivas, e uma estagiária de Serviço Social da UCPel.” (fl. 118);
Ø “Sua função era de assessora de gabinete, cuidava das agendas da Secretária e do Chefe de Gabinete, Antônio Renato Paradeda Júnior, telefone, digitava memorandos e ofícios, função administrativa, após remetia aos recursos humanos, recebia correspondência. Sua escolaridade é 2º Grau. Trabalha sozinha, não tinha subordinados.” (fl. 119);
Ø “Sua função é administrativa, tem desenvolvido trabalhos em planilhas de um programa do TCE, formatando regimento interno, protocolizando e reportando ao Sr. Edmar. Sua escolaridade é 3º Grau incompleto, Administração. Trabalha sozinho, não tem subordinados.” (fl. 120);
Ø “Sua função é secretariar o Secretário, desenvolvendo as seguintes atividades: digitação, agenda e administrativo. Sua escolaridade é 2º Grau. Trabalha sozinha, não tem subordinados.” (fl. 121);
Ø “Sua função é assessor de imprensa, fotógrafo.” (fl. 122);
Ø “Sua função é assessorar o Secretário, exercendo as seguintes atividades: auxiliá-lo, elaborando planilhas, memorandos, documentos. Não há funcionários subordinados à depoente.” (fl. 126);
Ø “Sua função é ser a responsável pela entrega da medicação que é comprada em cumprimento às ordens judiciais contra o Município. Não há funcionários subordinados à depoente.” (fl. 127).
A auditoria do Tribunal de Contas do Estado analisou os cargos em comissão CC3 da Prefeitura, assinalando a respeito que:
“Do exposto, conclui-se que a manutenção dos referidos cargos em comissão constitui-se em burla ao instituto do concurso público, conforme determina a Constituição Federal, em seu artigo 37, inciso II”, e, a seguir, que se está diante de “flagrante ilegalidade” (fl. 201).
4. Mas não é só.
Outra irregularidade grave está a inquinar de nulidade os cargos impugnados, pois eles não têm suas respectivas atribuições definidas nos diplomas legais que os criaram.
Cumpre lembrar que o artigo 32 da Constituição Estadual exige de forma clara que os cargos em comissão sejam criados por lei que defina suas atribuições de chefia, direção ou assessoramento.
A exigência tem razão óbvia, de permitir a correta fiscalização sobre a adequação dos cargos que serão criados ao mandamento constitucional, pois se fosse permitido criar um cargo sem que a lei estabelecesse as respectivas atribuições, não haveria como saber se as funções a serem desempenhadas são efetivamente compatíveis com as dos cargos em comissão.
No caso da Prefeitura, o rol de atribuições fica relegado aos regimentos internos das secretarias municipais, o que não satisfaz a exigência da Carta Magna por subtrair do processo legislativo um elemento indissociável da lei de criação de cargos públicos.
Isso também propicia a alteração de funções quase que ao arbítrio do administrador, já que os cargos costumam ter nomes genéricos como Assessor Técnico, que nada informam sobre as funções que seriam desempenhadas.
A conseqüência é aquela mostrada no relatório do Tribunal de Contas: os “CCs” trabalhando em funções burocráticas e/ou funções diversas daquelas previstas no regimento interno.
5. Enfim, nenhum dos cargos que são objetos desta ação se amoldam ao conceito de cargos em comissão admitidos pela Constituição Federal, eis que as atividades podem perfeitamente ser executadas por servidores do quadro de efetivos, uma vez que inexiste a necessidade de que o sejam por pessoas de confiança absoluta do Prefeito Municipal, assim entendida aquela confiança cuja ausência seria capaz de colocar em risco as diretrizes políticas traçadas para o órgão público.
Ao invés de, por exemplo, criar-se um cargo efetivo de recepcionista, opta-se pela criação de um Chefe de Serviço, procurando, através de uma denominação falaciosa, caracterizar caso de provimento em comissão. Desse modo, os “chefes” acabam por ser, na verdade, os executores do serviço público, e não os transmissores de diretrizes políticas.
Foi dada uma elasticidade indevida e aberrante ao dispositivo constitucional, desvirtuando-o de modo a possibilitar a criação de inúmeros cargos em comissão, nos quais se desempenham funções que deveriam ser atribuídas a servidores de provimento efetivo (agentes administrativos, auxiliares técnicos etc.).
Volte-se ao escólio de Diógenes Gasparini, ao comentar a existência do provimento comissionado: “Mas, certamente, não se pode criar somente cargos em comissão, dado que outras razões existem contra essa possibilidade. Ainda mais essa criação desmedida e descabida deve ser obstada quando a intenção evidente é burlar a obrigatoriedade do concurso público para o provimento de cargos efetivos. De sorte que os cargos que não apresentam aquelas características ou alguma particularidade entre seu rol de atribuições, como seu titular privar de intimidade administrativa da autoridade nomeante (motorista, copeiro), devem ser de provimento efetivo, pois de outro modo cremos que haverá desvio de finalidade na sua criação, e, por conseguinte, possibilidade de sua anulação” (obra citada, página 209, sem grifos).
A conseqüência para o desrespeito a tais princípios é trazida por Adilson Abreu Dallari: “é inconstitucional a lei que criar cargo em comissão para o exercício de funções técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior” (obra citada, página 34).
O Excelso Supremo Tribunal Federal tem posicionamento claríssimo sobre a matéria:
“A exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza” (em ADIN n° 1.141-3-GO, DJU 4/11/94, Relator Sepúlveda Pertence);
Na representação n° 1.284-4-SP, o Tribunal Pleno do STF declarou a inconstitucionalidade de Lei Complementar que criava cargo em comissão de Agente de Segurança Judiciária, concluindo que “a criação de cargo em comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional do concurso, erigido em pressuposto de acessibilidade aos cargos públicos” (original sem grifos).
No âmbito do Estado, o Tribunal de Justiça tem jurisprudência iterativa a respeito da matéria, consagrando o entendimento da inconstitucionalidade da criação de cargos nos moldes existentes na Prefeitura de Pelotas.
Citam-se alguns julgados:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS MUNICIPAIS. CARGOS EM COMISSÃO.
Mostram-se inconstitucionais disposições de Leis Municipais que criam e elevam o número de cargos em comissão, sem definir as respectivas atribuições e sem que constituam, apesar da denominação, cargos de direção, chefia ou assessoramento, para atividades burocráticas e de caráter permanente. Afronta ao art. 32, da Constituição Estadual.
Ação julgada procedente. Nº 70008013906.
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. CARGOS EM COMISSÃO. CRIAÇÃO. OFENSA AO ART. 32, caput, DA ce/89. INCONSTITUCIONALIDADE.
1. São inconstitucionais as Leis 758/96, 925/97, 928/97, 625/95, 131/90, 035/89, 020/89 e 720/95, do Município de Portão, perante o art. 32, caput, da CE/89, vez que os cargos criados não se destinam às funções de direção, chefia, ou assessoramento, razão pela qual não exigem relação de confiança entre os ocupantes dos cargos e o Chefe do Executivo.
2. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.
ADIN. CRIAÇÃO DE CARGOS EM COMISSÃO COM ATRIBUIÇÕES PRÓPRIAS DE CARGOS DE PROVIMENTO EFETIVO. OFENSA À CONSTITUIÇÃO ESTADUAL.
A criação dos cargos em comissão pressupõe o desempenho de função de direção, chefia ou assessoramento, requisito não observado pelos requeridos.
AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. Nº 70008077380.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CRIAÇÃO DE CARGOS EM COMISSÃO. POSSIBILIDADE EM SE TRATANDO DE DIREÇÃO, CHEFIA E ASSESSORIA. A CRIAÇÃO DE CARGOS DITOS EM COMISSÃO, PARA FUNÇÕES TÉCNICAS, BUROCRÁTICAS E OPERACIONAIS, CONSTITUI-SE EM BURLA AO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL (ART. 32). AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. Nº 70011374410.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL. CARGO EM COMISSÃO.Mostram-se inconstitucionais disposições de Lei Municipal que criam cargo em comissão e lhe definem as atribuições, sem que constitua cargo de direção, chefia ou assessoramento, mas para atividade burocrática e de caráter permanente ou de mera execução. Afronta ao art. 32, da Constituição Estadual.
Ação julgada procedente. Nº 70008868051.
6. Concluindo, em face de as leis que criaram os cargos de Assessor Técnico III da Prefeitura de Pelotas não terem sido recepcionadas pela Constituição Federal, ou mesmo pela Estadual, decorre a nulidade dos atos de provimento desses cargos.
Deve-se mencionar que em virtude de tais leis serem anteriores à Emenda Constitucional que deu a nova redação ao artigo 32 da Constituição Estadual, não existe a possibilidade de os diplomas legais serem confrontados com ela através de ação direta.
Há que se tomar as providências exigidas pelo caso em sede de ação ordinária.
Para tanto, a concessão de provimento judicial, no sentido de ordenar o desfazimento de todas as nomeações (proibindo que outras sejam feitas em substituição), em prazo a ser fixado pelo juízo, é imperiosa.
E deve ser feita já em sede liminar.
Por muitos anos o preenchimento desses cargos irregulares vem causando prejuízos graves à Administração Pública.
Os princípios basilares que a regem são flagrantemente desrespeitados pela mantença dos cargos.
Não há apenas ofensa manifesta ao princípio da legalidade.
As repartições públicas acabam tendo uma rotatividade enorme de servidores a cada novo administrador que assume a prefeitura, com prejuízo grave à eficiência do órgão público.
Há desmotivação crescente dos servidores concursados ao perceberem cargos com remuneração maior serem preenchidos por pessoas sem qualificação técnica, ao passo que os funcionários efetivos e que permanecerão todas suas vidas profissionais na Prefeitura não são valorizados.
A desejada impessoalidade da administração é prejudicada pela existência de um número exagerado de servidores que são escolhidos sem seleção ou concurso público, mas por critérios meramente políticos, quando não seja por motivos ainda menos nobres.
A acessibilidade aos cargos públicos é burlada de forma evidente.
Assim, não há mais como permanecer uma situação tão irregular.
Não se deve aguardar o desfecho desta ação civil para que a Administração Pública seja recolocada nos trilhos da legalidade, quando a fumaça do bom direito se mostra de forma tão evidente.
O perigo na demora consiste em permitir que princípios constitucionais permaneçam sendo violados por longos anos até a decisão final.
Por outro lado, um provimento liminar não prejudicará a Administração ou a continuidade dos serviços, justamente porque as respectivas atribuições poderão ser desempenhadas através da concessão de função gratificada (FG3), beneficiando servidores efetivos.
Por outro lado, a concessão de prazo razoável ao desfazimento das nomeações também possibilitará que a Prefeitura abra concurso público para preencher as vagas, e, enquanto não se ultima o certame, sempre será possível a contratação emergencial prevista na Constituição e regulada por lei municipal.
7. Pelo exposto, requer o Ministério Público:
- a concessão de medida liminar que suspenda os efeitos de todas as nomeações feitas para cargos em comissões de Assessor Técnico III, determinando-se que a Prefeitura, no prazo sugerido de 60 dias, promova as exonerações respectivas, e proibindo-a de realizar novas nomeações;
- a citação do demandado, para que apresente resposta no prazo legal;
- a produção de todos os meios de prova em direito admitidos;
- que ao final seja julgada procedente a ação, decretando-se a anulação todos os atos de nomeação existentes para os cargos em comissão de Assistente Técnico III, e condenando-se o Município à obrigação de não voltar a prover esses cargos.
Pelotas, 27 de dezembro de 2006.
Jaime Nudilemon Chatkin,
Promotor de Justiça.